Sonhar não custa nada! Ou quase nada...

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 31/10/2025
Horário 07:02

Fevereiro de 1992. Eu e meu primo Marcelo estávamos no Rio de Janeiro para realizar o nosso maior sonho.  Íamos sair na escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. O enredo era: “Sonhar não custa nada! Ou quase nada”.  Para dois sonhadores, o enredo não poderia ter sido mais apropriado. Estávamos hospedados num hotel no bairro do Botafogo. Meu irmão Roy iria sair na Mangueira. 
Recebo um telefonema dele: Estou passando aí, vamos  lá no  centro velho do Rio pegar a minha fantasia.  Chegamos  no  centro velho,  meu irmão encosta o carro. Moleques da rua se aproximam como abelhas num pote de mel: Oh tio, podemos tomar conta do carro? Oh, tio a gente lava também. Roy conhecia a malandragem carioca e finge ser um policial dizendo: É batida, é batida, sou cana e com as mãos para trás simulou como se fosse pegar uma arma e a molecada vazou grande do local. Economizei né, disse Roy.  
Meu primo Marcelo dá risada desse teatro. Comecei a reparar o centro velho do Rio que estava decadente.  Passamos pela lendária Rua do Ouvidor, que foi o enredo do Salgueiro em 1991. Lembrei  de alguns versos desse  samba-enredo: Pra primeiro de março/ falta um traço/ pra Ouvidor/ E no samba/ faltava/ esse traço/ de amor... 
Nesse tempo da famosa Rua do Ouvidor, o Rio era mais feliz. O prédio onde íamos pegar a fantasia ficava a uns 300 metros de onde paramos o carro. Chegando no prédio, fomos pegar o elevador. Um senhor de cabelos brancos, muito educado, nos cumprimenta. Estava com um negro que era a cara do “Amigo da Onça”, personagem  de cartoon e história em quadrinhos criado por  Péricles e que foi publicado pela primeira vez em 23 de outubro de 1943 na revista Cruzeiro. 
Um figuraço. Trajava uma bermuda e uma camisa com a mesma estampa havaiana de cor verde bem chamativa. Notei que ele estava sonolento. No momento em que abriu a porta do elevador, saíram várias pessoas reclamando e xingando. O que será que aconteceu? Pensamos. Entramos no elevador e o senhor de cabelos brancos educadamente nos pede para apertar o botão do décimo andar. Ué, era o mesmo andar que nós íamos. O prédio era enorme, bem antigo.  
Quando a porta do elevador se abre, notamos que tinha dezenas de salas vazias. Vimos uma placa escrita: “Soeiro o alfaiate”.  Roy nos disse: Se preparem que vai ter matéria.  Tinha um quadro com uma foto grande do Soeiro com o Pelé. Com certeza devia ser dos áureos tempos de ouro da sua profissão. O Rei do futebol foi um dos seus fregueses. Mas estava decadente como o centro velho do Rio. Pegou mais de 80 ternos para fazer. Uma mega encomenda para esse velho alfaiate. O clima estava tenso. Os ternos não estavam prontos e o desfile iria acontecer mais à noite.  
O homem de cabelos brancos educadamente diz ao alfaiate: Boa tarde, meu nome é Hélio, número 44 da Ala dos Compositores de Mangueira. O amigo da onça chega perto de um jovem que estava com seu cavaquinho e diz: Oh rapá, me dá o lugar que estou pernoitado. O jovem do cavaquinho fica com a cara fechada e em silêncio. O amigo da onça insiste: Pô, tô pernoitado, me dá uma beirinha ai. O jovem do cavaquinho é encanado e pensa que o amigo da onça tá tirando uma e diz: Vai tomando o c... e eu com isso que está pernoitado?
Nesse ínterim, o alfaiate chega timidamente para o Senhor de cabelos brancos e fala que o terno não está pronto. Rapaz, esse tal do seu Hélio ficou bravo e começou a xingar o alfaiate até a quinta geração. O jovem do cavaquinho se levanta para pegar sua fantasia, o amigo da onça se acomoda na cadeira esticando suas pernas cansadas e fala para o Hélio:  Calma Hélio, o alfaiate é gente boa, ele pecou na equipe, olho grande. Não é que esse malandro já tinha reparado que o alfaiate foi fisgado pela ganância, pois tinha apenas duas costureiras para fazer 80 ternos. 
O Roy fala: Esse coitado do alfaiate não vai sair vivo daqui. O jovem do cavaquinho vai saindo com sua fantasia quando o amigo da onça, com os olhos fechados, cabeça encostada na cadeira, pergunta: “Tá feliz”. O moleque é encanado, vem igual um touro bravo parando bem perto do malandro, louco para arrumar uma treta, e diz: “Tô sim, por quê? O amigo da onça sem abrir os olhos, com sua malandragem, sai na categoria com  fina ironia,  dizendo: “Então, bom desfile”.  
Nisso, o Hélio continua xingando o alfaiate, mais integrantes da Mangueira chegando e o Roy fala para o Marcelo: Não falei que ia ter matéria? Vejam vocês.
“Sonhar não custa nada
 O meu sonho é tão real
Mergulhei nessa magia
Era tudo que eu queria"...
 


 

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