Tchiloli

António Montenegro Fiúza

«Minha esposa e senhora
Já não tereis em poder
Vosso esposo que assim chora
Pois a morte roubadora
Vos roubou todo o prazer!»
Valdevinos, em Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carloto Magno, de Baltazar Dias, 1540

A obra literária tem um poder sublime, de ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço, de se autonomizar do seu autor e percorrer caminhos próprios. Em 1540, quando Baltazar Dias escrevia um texto dramatúrgico, de seu nome «Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carloto Magno», não imaginaria que volvidos 480 longos anos, numa pequena ilha do Atlântico, a sua peça teatral estaria ainda viva e se tornasse numa das suas expressões culturais mais características.
O autor é conhecido por trovar a herança cavalheiresca e pelo espírito da renúncia, numa altura em que tais temas deixavam de estar em voga, manteve-se firme à tradição e granjeou a popularidade, entre o povo e os nobres. Um de seus textos, viajando por mais de 5 mil quilômetros e quantas mais milhas marítimas; ultrapassando as barreiras linguísticas originais, atravessando séculos e séculos de acontecimentos de vários níveis, os quais não foram suficientemente fortes para destruir essa manifestação cultural. 
Seria da simplicidade dos seus textos, dos altos e idílicos valores propostos, seria a qualidade da trova e do lirismo presentes? Não se sabe, mas o certo é que a peça deu origem a um dos movimentos civilizacionais basilares da identidade santomense, o tchiloli, o qual constitui uma amálgama de teatro, dança e música, num sincretismo cultural que une a Europa à África, e na qual transborda a lusofonia. Anacrônica na linguagem e nos figurinos, nos cenários e nos adereços, apresenta como atores apenas homens – tal como mandava a tradição medieval, os quais desempenham personagens de ambos os sexos. Mas não qualquer homem! Sendo uma tarefa nobre, a de perpetuar a essência e a identidade santomenses, para representar no Tchiloli, é preciso que o ator seja conhecido pela sua boa índole, ausência de vícios, bons princípios e uma conduta incólume.
Um autêntico enredo de novela das nove: Carloto, filho do Imperador, ama a esposa de Valdevinos, e numa festa de caça, mata-o, esperando assim ficar com a amada; os pais da vítima exigem justiça ao Imperador Carlos Magno e esse encontra-se no dilema entre fazer o que é certo e justo e proteger o seu filho. E, firme à ética e à honra cavalheirescas, Carlos Magno prefere a justiça ao amor filial.

Já agora senhor Marquez
Vos podeis chamar Vingado
Porque assaz é castigado
O que tanto mal vos fez
Pois que morreu degolado
Fazei por vos alegrar
Dai graças ao redentor
Pois assim nos quis vingar
Sem nenhum de vós perigar
E com mais vosso valor.
Imperador Carlos Magno, idem 
 

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