São Paulo amanheceu de luto. O céu, com seus 13 graus e o peso de um cinza-nublado, parecia chorar a partida de Arlindo Cruz. Mais um grande bamba do samba se foi, partindo para o infinito justo numa sexta-feira. O samba está de luto. E eu, aqui, sozinho, no apartamento da minha filha, Flávia, respiro a cidade grande e suas memórias.
A Frei Caneca de hoje, com seu progresso e corre-corre, mal parece a rua da minha juventude. Foi nessa rua, num pequeno apartamento, que dividi a vida com os queridos amigos José Roberto Marcondes e Tiago Marcondes. Juntos, construímos sonhos e risadas, escutando Beto Guedes com sua canção “Amor de Índio”: Sim/ todo amor é sagrado, Lô Borges com seu girassol da cor do seu cabelo, Paulinho da Viola com o samba, Tudo se transformou: Ah meu samba/ tudo se transformou/ nem as cordas do meu pinho/ podem mais amenizar a dor... e assim íamos vivendo a nossa mágica idade.
Lembro da noite chuvosa em que o Tiago, o nosso “Alemão teimoso como uma mula”, partiu para se aventurar em Londrina. Nem deu bola para os nossos apelos. A tristeza entrou em nossos corações sem pedir licença. Eu e o Zé Roberto olhamos para o beliche vazio e, numa decisão mútua, resolvemos serrá-lo. Nunca gostamos mesmo de dormir em beliche. Nossa indignação e nossa saudade se transformaram em serragem. O coitado do beliche pagou o pato por uma tristeza que não era dele.
Foi também nessa rua, num orelhão, que liguei para aquela que se tornaria a Mulher Maravilha da minha vida. Éramos cheios de sonhos e humor, e ainda somos. Guardo essas lindas lembranças na parede da memória, enquanto o samba, sempre o samba, continua a ser meu companheiro, na alegria e na tristeza. Arlindo Cruz, com sua partida, deixa uma marca profunda na nossa rica MPB.
A cidade, com seus milhões de rostos invisíveis, segue seu ritmo. Minha filha e meu genro foram para a praia, deixando a metrópole de opções infinitas e a mim, com minha melancolia. Prendi-me ao sofá, e a série “Wednesday”, da linda bruxinha Wandinha, da lendária Família Addams, se tornou meu único refúgio. A personagem é uma bruxinha autêntica que falta neste mundo de máscaras, de fanatismo, de violência, de esquerda ou direita enquanto os mais vivos continuam governando os menos vivos. Quantas bobagens envolvidas em narrativas mentirosas. Wandinha com sua ácida sinceridade, que nunca pede desculpas para descobrir a verdade, me diverte, me anima e me faz esquecer, por instantes, dessa falsidade, que nos cerca.
Para aliviar esse triste estado de coisas, escuto um samba de Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho. Uma homenagem poética e necessária a quem nos deixou um legado tão imenso. A voz de Arlindo ecoa na sala, e o samba, mais uma vez, me salva.
Alto lá!
Eu soube que você anda falando
Que eu vivo implorando
Pra voltar ao nosso lar
Alto lá!
Guarde a língua na boca
Sua verdade é tão pouca
Como pode ter razão?
Se foi você quem me pediu perdão
Se foi você quem me pediu perdão
Ah! Você não mereceu
Amor igual ao meu
Era pra ser guardado
Você não cumpriu
Os mandamentos
E tanto mentiu
Que conseguiu!
Tudo acabado
Vai! Quero viver em paz
Você pisou demais
Meu coração sofrido
Eu volto pra orgia
O meu mundo proibido
De onde eu nunca devia ter saído...