O dia começou antes de mim. Sei disso porque, quando abri os olhos, a luz do Sol atravessava as frestas da persiana, projetando listras de ouro sobre o chão frio. Fiquei alguns minutos deitado, tentando me lembrar dos sonhos, mas eles escapavam com a pressa dos pássaros. O que me restava era o ruído distante de uma moto e a respiração lenta da cidade que acordava. Pensei — não sem certo assombro — que tudo aquilo estava ali mesmo sem mim, mas que só se tornava “meu mundo” quando eu o acolhia com os sentidos.
Levantei-me. O piso gelado me lembrou que tenho corpo. Às vezes esqueço: passo o dia inteiro dentro da cabeça, fazendo planos e respondendo a mensagens, e quase não reparo que meus pés tocam a terra. Talvez o corpo seja isso: a ponte onde a consciência pisa para encontrar o mundo.
Na cozinha, a chaleira repousava no fogão, silenciosa, como se me esperasse. Enchi-a de água e acendi a chama. O fogo subiu com aquele som seco e rápido, lembrando que o mundo também fala, mesmo quando não usamos palavras. Esperei. O vapor começou a escapar, primeiro tímido, depois decidido. Despejei a água sobre o pó de café. Enquanto o líquido descia, percebi que havia algo curioso ali: o café já tinha sua história antes de chegar à minha mesa. Foi semente, foi planta, foi fruto, foi colhido por mãos que talvez nunca conhecerei, torrado por alguém em algum lugar, embalado, transportado, vendido. Tudo isso aconteceu sem a minha participação. Mas, no instante em que o cheiro me envolveu, tornou-se parte da minha história. É assim que consciência e mundo se encontram: não no ato de criar um ao outro, mas no de se reconhecerem mutuamente. O mundo não precisa de mim para ser mundo, mas precisa de um olhar para ser “este mundo” que eu percebo. E eu, sem o mundo, seria apenas uma consciência vazia, sem matéria para pensar, sentir, transformar.
Terminei o café e decidi sair. O ar frio da manhã me abraçou como quem diz “acorda, há mais para sentir”. Na calçada, as pedras irregulares me obrigavam a ajustar o passo. Passei pela praça, onde o vento fazia as folhas dançarem; um casal discutia baixinho, mas com gestos largos. Tudo aquilo existia antes de eu chegar, mas, ao chegar, tornou-se uma narrativa que eu posso contar. Pensei no que significa “habitar” o mundo. Não é só estar nele, mas permitir que ele esteja em nós. É aceitar que somos atravessados por cheiros, sons, imagens, histórias. É entender que nossas ideias mais abstratas nascem de experiências concretas: a filosofia que fala do Ser começa, muitas vezes, no simples ato de tomar uma xícara de café.
Raul Borges Guimarães é professor titular do Departamento de Geografia da FCT/Unesp (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista) e pró-reitor de Extensão Universitária e Cultura da mesma instituição. Contato: [email protected] e Instagram @fala_raul