A violência que atravessa os séculos: por que o homem ainda mata como na caverna

OPINIÃO - Marcelo Creste

Data 12/12/2025
Horário 05:00

O Brasil encerra mais um ano com números recordes de feminicídio. São vidas subtraídas com brutalidade, em cenas que impressionam até profissionais acostumados à morte. São golpes repetidos, espancamentos, estrangulamentos, tiros à queima-roupa, arrastamentos de corpos. São mulheres assassinadas dentro de casa, no local de trabalho, na rua, às vezes diante dos filhos.
Mas a pergunta que mais deveria nos assombrar não é “quantas morreram?”, e sim: como é possível que, após milênios de história, o homem continue matando a mulher como se ainda vivesse na era das cavernas?
É aqui que a estatística revela sua face mais dolorosa: por trás dos números está a permanência de uma lógica ancestral, que atravessou intacta toda a evolução civilizatória. Somos capazes de enviar sondas a Marte, mas não de impedir que homens matem mulheres por ódio, frustração e sentimento de posse. O crime mais antigo da humanidade continua vivo.
Em 1950, o jurista Nelson Hungria escreveu um libelo contra o chamado “crime passional”, denunciando a farsa moral que, por séculos, permitiu que homens matassem mulheres sob o falso pretexto de “amor”. Hungria mostrou que não havia nisso paixão, mas ódio; não havia impulso, mas cálculo; não havia delírio, mas ressentimento.
Setenta anos depois, sua leitura permanece assustadoramente atual. O feminicida contemporâneo é o herdeiro direto do agressor que Hungria descreveu: um homem movido por vaidade ferida, desejo de domínio, medo da autonomia feminina e ressentimento profundo. Ele não mata porque ama — mata porque acredita que perdeu aquilo que julgava possuir. E, como escreveu o próprio Hungria, “quase todos preparam o crime”.
O homem moderno, o cérebro ancestral. Temos milhares de anos de história, centenas de códigos morais e religiosos, bibliotecas inteiras de filosofia e ética. No entanto, o homem que hoje espanca, esfaqueia ou estrangula sua companheira age com os mesmos impulsos primitivos do macho ancestral que eliminava a fêmea quando percebia ameaça ao seu domínio.
A cultura mudou. As leis mudaram. A tecnologia mudou. Mas o núcleo emocional masculino — frágil, inseguro, dominador — mudou muito pouco. E quando esse núcleo encontra frustração, rejeição ou autonomia feminina, explode em violência. A era digital reacendeu o fogo primitivo. As redes sociais, totalmente sem controle, funcionam como câmaras de eco para o ressentimento masculino. Ali, homens encontram validação para suas frustrações, discursos de ódio travestidos de opinião e comunidades que reforçam a crença de que a mulher é culpada por sua infelicidade.
É o efeito “backlash”: a mulher avança um passo em sua autonomia — e o homem reage com dez passos de violência. Ele culpa a mulher por tudo que não conseguiu ser. Ele a responsabiliza por seus fracassos, inseguranças e impotências emocionais. A violência deixa de ser ato isolado e passa a ser narrativa compartilhada. O feminicídio deixa de ser tragédia e torna-se vingança existencial.
O que mais impressiona? A continuidade da crueldade. A brutalidade não diminuiu com o tempo — aumentou. Hoje, é comum encontrar dezenas de golpes de faca, destruição do rosto, mutilações, fogo, atropelamento, estrangulamento prolongado, disparos múltiplos. Não há nada de “impulso” nisso. Há intenção. Há crueldade. Há ódio.
Hungria já dizia: não é amor, é vingança. Não é paixão, é posse. Não é fúria momentânea, é projeto de destruição. Por que falhamos como sociedade? Falhamos porque tratamos o feminicídio como um problema “de polícia”, quando ele é, na verdade um problema de estrutura social, de educação emocional, de masculinidade violenta, de desigualdade histórica, de cultura patriarcal, de omissão comunitária, de redes sociais convertidas em forjas de ódio. Falhamos porque, embora as mulheres tenham mudado, os homens não mudaram. Ou mudaram muito menos. E falhamos porque a sociedade, na prática, ainda concede aos homens a fantasia primitiva de que têm direito sobre a vida das mulheres.
A pergunta que não quer calar: Como pode uma humanidade que evoluiu tanto no plano externo continuar tão atrasada no plano interno? A resposta é amarga: porque a violência contra a mulher não é um erro da humanidade — é uma herança. E uma herança só se rompe com ruptura. Com educação. Com punição. Com responsabilização. Com política pública robusta. Com transformação cultural. Com coragem social de dizer o óbvio: o homem não pode matar a mulher porque ela ousou viver. Enquanto essa compreensão não for universal, seguiremos enterrando mulheres e produzindo viúvos que posam de vítimas do próprio ressentimento.
A civilização avançou por fora, mas permanece primitiva por dentro. Este é o verdadeiro diagnóstico. E é por isso que, em pleno 2025, escrevemos as mesmas denúncias que Nelson Hungria fez em 1950 — e que os filósofos já faziam há milênios. O feminicídio é o espelho mais cruel da humanidade. E, diante dele, não podemos mais desviar o olhar.
 

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