“As pessoas associam a arte à visão, mas há diversas maneiras de expressá-la”

- ANDRÉ ESTEVES

Data 02/02/2019
Horário 09:43
José Reis - Anderson vende biscoitos nas ruas de Prudente, mas seu sonho é sobreviver da arte
José Reis - Anderson vende biscoitos nas ruas de Prudente, mas seu sonho é sobreviver da arte

Filho adotivo, o artista plástico Anderson Nogueira Bosqueti, 35 anos, não faz ideia de quem herdou o talento para as artes, mas acredita ser irônico que uma pessoa com apenas 5% de visão tenha transformado o ofício em sua principal aspiração. Nascido com a deficiência, o garoto permaneceu aos cuidados de sua avó biológica até ser acolhido pela mãe adotiva, que decidiu ajudá-lo a sair da situação de pobreza e ter melhores condições de vida. Com o apoio da nova família, o rapaz conquistou a independência e hoje traça o próprio caminho. Enquanto não é possível sobreviver da arte, ele cozinha biscoitos amanteigados e vende em áreas comerciais de Presidente Prudente. Embora esteja solteiro atualmente, Anderson já passou por dois casamentos e teve um filho em cada um deles. Um terceiro matrimônio não está em seus planos, mas ele afirma não estar fechado para negócio.

O verdadeiro objetivo do artista, contudo, é profissionalizar a sua atividade e aperfeiçoar seus trabalhos, tanto que começou a explorar agora uma nova modalidade – o grafite –, com a ajuda do professor Itamar Xavier de Camargo. Ele pretende utilizar os sprays para reproduzir desenhos que, por ora, estão registrados nos papéis canson: uma série de palhaços, que vai desde as figuras do imaginário infantil até aquelas que povoam a cultura popular, como o Ronald McDonald, da franquia de restaurantes McDonald’s. Em sua ilustração, Anderson explora um contraste: o palhaço mundialmente conhecido pela rede de fast-foods segura em suas mãos não um hambúrguer, mas uma maçã. Outro contraste também é abordado – o palhaço que faz os outros rirem, mas internamente é triste. E há ainda o cuidado com a inclusão social, quando desenha o homem negro que também se veste com os trajes circenses. Em entrevista concedida a O Imparcial, o artista relembra o seu processo de adaptação em sociedade, a sua relação com a arte e os projetos para o futuro.

O Imparcial: Anderson, você já nasceu com baixa visão ou o quadro se agravou com o tempo?

Anderson: Eu já cheguei a ter 10% de visão, mas há um desgaste natural com o passar do tempo. Esse desgaste normalmente é pequeno, no entanto, para quem tem pouco, o pequeno acaba sendo muito. Atualmente, enxergo 5%, o que para a medicina já é considerado cegueira. Quando nasci, os médicos já sabiam da minha deficiência, mas só iniciei um acompanhamento médico mais elaborado a partir dos 6 anos.

Como é crescer com a deficiência visual?

Eu costumo dizer que foi fácil, porque já nasci desse jeito, então, não perdi nada e não tenho com o que comparar. Da mesma forma que uma pessoa que enxerga totalmente consegue se desenvolver, também consegui.

Quais foram as dificuldades mais comuns enfrentadas durante a infância?

Houve adaptações que precisaram ser feitas. Um aluno com baixa visão ou cegueira total necessita passar por uma sala de recursos para fazer a pré-alfabetização e, em seguida, ser incluso nas salas de aula comuns. No meu caso, tive acesso aos equipamentos especializados na Escola Estadual Maria Luiza Formozinho Ribeiro, onde aprendi a ser incluído em sociedade por meio do texto ampliado. Com isso, não precisei aprender o braile. Outras alternativas foram a gravação das aulas, a fim de facilitar a “leitura”, e o ditado. Como eu não enxergava a lousa, um aluno ditava para mim o que estava escrito.

Em geral, o município de Presidente Prudente está preparado para acolher uma pessoa com deficiência visual?

O legal em Prudente é a sociedade, pois as pessoas sentem muita vontade em ajudar. Quando veem a gente precisando atravessar a rua ou verificar um preço no mercado, são muito solícitas. A bengala sinaliza a minha deficiência e, com isso, as pessoas vêm ao auxílio. Agora, em termos de planta física, a cidade deixa muito a desejar. O calçamento é péssimo, a conservação das vias é muito ruim, os pisos táteis que colocaram em várias calçadas não são úteis e, muitas vezes, levam de lugar nenhum para lugar algum. Poderia haver uma atenção maior do poder público em relação à acessibilidade.

Apesar disso, você se considera um cidadão independente?

Sim, consigo desenvolver as mesmas funções que qualquer outra pessoa faria. Às vezes, preciso de um tempinho maior para chegar no mesmo caminho, mas chego.

Há quanto tempo está envolvido com a arte?

Desde o início do período escolar, que foi quando passei a entrar em contato com materiais de pintura e desenho e tomar gosto. Na escola, eu precisava esperar um aluno copiar a matéria para, em seguida, ditar para mim, então, eu usava esse intervalo para desenhar.

A baixa visão interferia na atividade? Como aliou a sua deficiência com o interesse pela arte?

Até ajudou, porque a pessoa com baixa visão é mais perceptiva aos detalhes do que a pessoa que enxerga.

Você aprendeu a desenhar sozinho ou contou com ajuda?

Eu tenho uma facilidade natural para desenho, mas fiz cursinhos e aulas que me ajudaram a aprimorar. Não tenho formação acadêmica. Cheguei a cursar Artes, mas perdi a bolsa. Entretanto, tenho o interesse de retornar para a universidade.

No que está trabalhando atualmente?

Estou preparando um material para uma exposição que pretendo realizar no futuro, com a temática de palhaços, e aprendendo a arte do grafite com o professor Itamar. Me interessei por isso porque, em virtude da minha deficiência, vou conseguir trabalhar em um espaço maior e ter mais liberdade para corrigir falhas no meu traço. Se eu fiz uma parte que não gostei, consigo refazer com mais facilidade.

Em algum momento, alguém te encorajou a desistir desse ofício?

Não, a minha família sempre me incentivou e meus amigos realmente acreditam em mim e me apoiam bastante.

Qual a importância da arte na sua vida?

Acredito que ela traz mais calma e serenidade. Isso me ajudou bastante, pois é um momento de reflexão.

Você conhece outras pessoas com deficiência visual que têm o interesse de aprender a desenhar e pintar? Já houve essa troca de experiências?

Sim. Há algum tempo, iniciei um trabalho voluntário na Associação Filantrópica de Proteção aos Cegos de Prudente, mas comecei a trabalhar formalmente logo depois e tive que interromper o curso. Acredito que quando eu tiver um tempo maior e conseguir um emprego estável, vou providenciar um espaço dedicado a ajudar essas pessoas.

Na vida pessoal, qual o seu maior sonho?

Hoje, estou desempregado e custeando meus gastos por meio da venda ambulante e de um benefício que recebo do governo. Gostaria de uma independência social mais significativa, porque o valor que arrecado é muito baixo e não é fixo – não consigo contar com ele todo mês. Na rua, vendo biscoitinhos amanteigados que eu mesmo preparo. Não vou ser soberbo e dizer que não tem dado rendimento – tem dado, sim, mas acredito que pelo lado errado. Não queria que o retorno da sociedade fosse pelo fato de eu ser deficiente. Muita gente diz que vai comprar para ajudar, quando eu queria que comprassem porque gostam do meu produto.

O dinheiro que você faz hoje poderia ser arrecadado com a arte?

As pessoas sabem apreciar a arte, mas infelizmente a nossa região não é um polo econômico tão elaborado que permita as pessoas gastarem com isso. O poder aquisitivo é muito baixo ainda. Na época em que fazia pintura a óleo sobre tela, vendia bastante meu material, mas hoje me dedico a outras formas de desenho e pintura. O meu sonho é ser reconhecido e conseguir me manter exclusivamente da arte.

Você desenha, cozinha e circula de forma independente. Pelo visto, consegue se virar muito bem sozinho.

Eu falo que a visão não é um limitador tão grande assim. É como você estar em sua casa e fechar os olhos. As coisas continuam no mesmo lugar. Você só precisa lembrar onde estão.

Você acha irônico ter nascido com deficiência visual e praticar uma atividade que normalmente é atribuída a pessoas com visão?

É no mínimo engraçado, porque as pessoas realmente associam a arte à visão, mas, como deficiente visual, entendo que há diversas maneiras de expressá-la. Outro dia, eu estava vendo uma reportagem sobre um balé de meninas surdas. Elas sentiam a vibração da música por meio dos pés. Na falta de um, há muitos outros sentidos para serem explorados.

Você relatou que agora aguarda uma colocação no mercado de trabalho. Acredita que as empresas não estão preparadas para receber uma pessoa com deficiência?

No Brasil, há a lei de inclusão que determina a contratação de uma cota de pessoas com deficiência em relação ao número de funcionários que trabalha em uma empresa. De vez em quando, as autoridades competentes fazem a fiscalização e obrigam o local a contratar. No entanto, os empregadores querem pessoas com deficiência leve ou moderada, de modo que outras deficiências, como a cegueira, a surdez e, por vez, a deficiência física de grau mais elevado, são deixadas de lado. E no momento em que contratam e a fiscalização atesta que está ok, dispensam esse deficiente em poucos dias, alegando que ele não é produtivo. Preferem demitir ao invés de readequar o funcionário para uma função que seja mais condizente com a necessidade dele. Para a pessoa com deficiência visual, a admissão é mais difícil. Em Prudente, temos “n” pessoas com deficiência visual, mas é possível contar nos dedos quem está trabalhando no mercado formal.

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