"Sim, deve haver um perdão para mim, senão nem sei qual será meu fim"... Cartola

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 09/08/2020
Horário 08:02

O mundo não é alegre para mim. Acho essa vida uma droga. A realidade para mim é como um estômago vazio. Olho para ela com minhas unhas sujas e com um olhar de fúria. Meu quarto é escuro. Tive que me acostumar à luz de velas, pois não pago as contas de luz. O desemprego é um rato de olhos cinza que rói os meus sonhos e mija na minha esperança. Queria ter dinheiro para comprar um pouco de felicidade. Seria possível? Nunca soube mexer com dinheiro, mas amo olhar os quadros de Renoir. Procuro não olhar no espelho, aquele que aparece não sou eu. 
Meu coração continua tremendo de frio por não ter mais o amor de Madalena, que pena. Ainda sinto que nas noites, ela vem me abraçar, mas estou sonhando comigo mesmo. Por que quero me destruir? O quadro de Jesus Cristo ainda está pregado na parede do meu quarto. Por que devo retirá-lo? É tão acalentador olhar em seus olhos e sentir paz. Ver suas mãos tocando o seu próprio coração nu de maldade. Como me faz falta a espiritualidade. 
Ainda guardo o terno que casei. Hoje guardo uma garrafa de uísque no bolso do paletó. Tem a prostituta Lara, que às vezes vem me visitar. Fazemos sexo e ela não liga quando eu falo, já sob os efeitos dos vários goles de uísque: Madalena eu te amo. Ela sorri, me escuta, não me faz perguntas, não exige e nem me cobra nada.  Me diz que o único homem livre é o vagabundo. Aquele que não espera nada desse mundo, aquele que se rebelou, que não se comprometeu com uma sociedade que tem fome de dinheiro, que se alimenta de hipocrisia e se embebeda de cinismo. 
Talvez ela tenha razão. É uma mulher honesta com seus sentimentos. Sabe o significado do seu papel nesse mundo sujo. Dar o prazer, mesmo que seja fugaz, aos antros de grã-finos moralmente imorais, morando em seus copos de cristais cheios de champagne. Temos saída? O abismo me atrai, mas não tenho coragem de me matar. Pra quê? Não teria a mínima graça. Minha solidão traz a lucidez que sou uma folha seca na tempestade. Penso: Vamos criar outro tipo de moral? Para quê? Estamos fingindo que acreditamos na eternidade. O amor de Madalena era minha eternidade. Eu a perdi pela orgia. 
Preciso encontrar novamente uma razão para viver. Não quero ser mais um pessimista ambulante. Encontrar um novo sonho para sonhar, parar de mastigar a minha raiva e cuspir meus medos seria o ideal. Sei que estou vivendo desorientado, insatisfeito com a minha existência. O filósofo Nietzsche destacou que quem tem uma razão para viver é capaz de suportar qualquer coisa. A alegria sorri para os corajosos. Já fui um cara que tive momentos felizes. Quero me libertar do meu pequeno mundo doente. Estou caminhando pelas ruas sem afeto, sob a luz pálida da lua, procurando o rosto de Madalena na multidão. 
Sinto saudades de minha mãe, do seu amor incondicional. Passo em frente de um botequim. Ouço a melodia de um samba. Reconheço que é um samba de Cartola. Entro no botequim, sento-me à mesa. O garçom vem e peço uma cerveja. O samba de Cartola faz com que meu coração comece a bater forte como um surdo de marcação. Que sensação gostosa. A esperança é o melhor e mais forte sentimento que não desiste nunca: "Sim/ deve haver um perdão/ para mim/ senão/ nem sei qual será meu fim...”.
 

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