"Um distúrbio de memória na Acrópole"

Muitas vezes nos encontramos irritados, hiperativos e desorganizados e não nos reconhecemos. E perguntamos, o que será que está acontecendo? Estava tão bem e está tudo bem, mas não me reconheço. “Que bicho me mordeu?”, perguntam. E o mal-estar prolonga-se. E o dia a dia torna-se um tédio e um desconforto permeia as relações perturbando até os acontecimentos prazerosos. O que é familiar deixa de ser e algo estranho toma conta. 
Geralmente quando estamos atravessando as transformações ou passagens permanecemos cheios de incertezas, medo do desconhecido e dúvidas. Regredimos muito. Perdemos um pouco a estabilidade. Cesuras ou mudanças catastróficas são estados emocionais que nos desestabilizam. A fase como a adolescência é uma delas. Ser criança e evoluir para a adolescência é uma mudança catastrófica. É um pé lá na infância outro na adolescência. E custa muito retirar totalmente o pé da infância e se dirigir totalmente inteiro para a adolescência. Leva um tempo e é um luto. E o luto sabemos muito bem, envolve o tempo. E não podemos esquecer a ambivalência que também envolve todo esse processo. Ficamos felizes por evoluir ou desenvolver, mas, sofremos e queremos muitas vezes recuar ou regredir. 
A ambivalência gera um prazer e um desprazer ao mesmo tempo. Contarei uma situação muito rica e interessante de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, em seu texto “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936), em que ele viveu mais ou menos essa situação. Ele adoraria e sonhava conhecer a Acrópole em Atenas, mas julgava ser impossível. Quando criança conheceu as imagens estudando. Ele nasceu em 1856 e junto com o irmão mais novo, tiraram uns dias de férias. Naquela época ele tinha 48 anos. Eles decidiram viajar para Trieste até a ilha de Corfu, onde passariam os poucos dias de férias, mas, antes visitaram um amigo que perguntou para eles, quais seriam os planos de viagem. E eles disseram. E o amigo desaconselhou-os vivamente. “Que querem vocês lá por essa época do ano? É tão quente que não poderão fazer nada. É melhor irem a Atenas. O vapor da Lloyd parte hoje à tarde, terão três dias para ver a cidade e ele os pegará no trajeto de volta. Será mais agradável e valerá bem mais a pena.” 
Nesse momento, uma sensação de estranhamento apareceu internamente e o péssimo humor adentrou o ambiente. Eles desconcertados, discutiram a proposta. “Vamos ver Atenas? Está fora de questão; há muitas dificuldades”. Enfim, acabaram indo para a Grécia e chegando, Freud pensou: bom demais para ser verdade. Mas por que tal incredulidade em relação a algo que, pelo contrário, promete um enorme prazer? Uma conduta paradoxal. É um fracasso no triunfo? Normalmente se fracassa com a frustração, a não realização de uma necessidade ou desejo; mas nessas pessoas dá -se o contrário, adoecem, até mesmo sucumbem, pelo fato de lhes ter sido realizado um desejo extremamente forte. 
O indivíduo não se permite a felicidade, a frustração interna ordena que ele se apegue à externa. Mas por quê? Ele não pode esperar algo tão bom do destino. Ou seja, novamente “too good to be true”, a manifestação de um pessimismo. E qual é o final da estória ou história? O próprio tema Atenas e Acrópole já se encontra uma referência à superioridade dos filhos. Nosso pai, escreve Freud, foi um comerciante, não teve educação ginasial, Atenas não podia significar muito para ele. O que perturbou nossa fruição da viagem a Atenas, portanto, foi um impulso de piedade. Dói em cada um de nós, aceitar que muitas vezes, ultrapassamos, desenvolvemos e evoluímos além, pais. É uma sensação dolorosa. São as cesuras e mudanças, frutos de colheitas de muito trabalho. E são inerentes às nossas trajetórias.
 

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