Nos contos de fadas, Cinderela deixa o baile à meia-noite por temer que o príncipe encantado e os convidados vejam a sua verdadeira aparência. Longe dos castelos de reis e rainhas, príncipes e princesas, a jovem Paloma Aparecida Ferreira Lira, 21 anos, faz exatamente o contrário. Por meio de um canal do Youtube – o Cinderela Country –, ela relata sua rotina como portadora de ictiose lamelar congênita, uma doença sem cura caracterizada pela descamação da pele, e dá dicas de maquiagem para um universo composto por 128 mil inscritos, conquistados ao longo de dois anos. A plataforma de vídeos foi uma porta de entrada para que pessoas do mundo todo conhecessem a condição rara com incidência de um caso a cada 300 mil nascimentos, conforme dados do Ministério da Saúde.
Em entrevista concedida a O Imparcial em sua residência em Pirapozinho, a jovem narra o convívio com a doença durante a sua infância e adolescência, períodos marcados por 11 cirurgias e inúmeras viagens a Campinas (SP), onde realiza tratamentos dermatológicos, oftalmológicos e plásticos. Bem-humorada e otimista, Paloma não se deixa abater pelos comentários maldosos que acompanham a sua trajetória e acredita que o preconceito pode ser quebrado a partir do momento em que a informação é propagada, o que se propõe a alcançar em seus vídeos assistidos por milhares de seguidores. Acompanhe nas linhas a seguir:
O Imparcial: Primeiramente, explique para os nossos leitores o que é a ictiose lamelar congênita e quais são as suas causas.
Paloma: Trata-se de uma doença dermatológica que atinge somente a epiderme, sem qualquer relação com o meu organismo ou corrente sanguínea. Há três tipos de ictiose, sendo a bolhosa, a arlequim e a lamelar, então as manifestações variam de pessoa para pessoa. Há casos mais graves e outros mais leves. Estou no meio termo. Minha mãe não sabia de fato o que era a ictiose quando eu nasci, mas, ao final da gravidez, já começou a apresentar alguns problemas. A descoberta só ocorreu mesmo após o nascimento. Dizem que as causas são genéticas, embora minha família não tenha histórico tanto por parte de mãe quanto de pai. Os médicos cogitaram a possibilidade de vir dos meus antepassados. Pode ser que o meu filho não venha a ter, mas há chances de acometer o filho dele ou o meu bisneto, por exemplo.
É verdade que os médicos lhe deram uma sentença de vida de 24 horas após o seu nascimento?
Sim. Quando eu nasci, era uma das poucas crianças que tinham a ictiose. Junto comigo, eram sete pessoas no Brasil com a doença. Muitas das que nasciam com ela não sobreviviam, porque não suportavam ou porque, na época, não havia tantos medicamentos e tratamentos como hoje em dia, então a gente sofria um pouco mais. Por causa disso, chegaram a dizer para a minha mãe que eu tinha somente 24 horas de vida. Ela ficou assustada, mas consegui passar as 24 horas em meio à muita oração. Minha mãe dizia: “Eu não vou deixar a minha filha morrer. Se Deus me deu ela e permitiu que vivesse até agora, não há porque desistir”. Graças a Deus, superamos e, hoje, convivo normalmente com a doença. Eu vivo a minha vida como se a ictiose não existisse. Não é como se eu fosse uma pessoa normal – eu sou uma pessoa normal. A doença não afeta de forma nenhuma o meu bem-estar.
Desde a infância, você sempre teve acompanhamento médico?
Sempre tive. Quando era pequena, comecei a fazer o tratamento em Presidente Prudente, junto ao doutor [Wilson] Vidal. Ele me concedeu o tratamento de graça, porque os atendimentos eram particulares. Então, desde os meus 4 ou 5 anos, fazia todo o acompanhamento com ele. Mais tarde, fui encaminhada para o doutor Edwal de Freitas, de Campinas (SP), que faleceu quanto eu tinha 15 anos. Cheguei a morar um ano lá, porque ele era especialista da área e abrigava pessoas com ictiose até descobrir o melhor tratamento, depois voltei para cá e retornava para Campinas mensalmente. Como eu tenho um probleminha no olho, ele me encaminhou para um oftalmologista na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Após a sua morte, continuei o acompanhamento dentro do Setor de Dermatologia da Unicamp. Hoje, faço três tratamentos lá, sendo oftalmo, dermato e plástica. Meu problema no olho é decorrente da própria doença. Ele não afeta a minha visão, mas as pálpebras. Já fiz 11 cirurgias, que consistem em pegar alguma parte do meu corpo e fazer enxerto para tentar erguer as pálpebras.
No dia a dia, como funciona o seu tratamento?
Eu tomo um remédio oral para a pele e também aplico um creme que é manipulado em Campinas, porque não fazem em Prudente. Esse medicamento local foi justamente manipulado para mim, enquanto a acitretina [fármaco que atua para reduzir as escamações de pele] é recomendado para todas as pessoas que têm a ictiose. O tratamento é para amenizar a doença, porque a cura de fato não existe. Se eu não fizer o uso correto dos medicamentos, a ictiose se agrava mais e as escamações aumentam.
Os medicamentos são onerosos?
O governo repassa a acitretina, mas o medicamento manipulado infelizmente é caro. Um vidrinho de dois litros custa em torno de R$ 300 e pouco. Como nem sempre é suficiente para um mês, o valor pesa no orçamento. Quando consigo usar um vidrinho durante um mês inteiro, é porque fiz uma economia.
Quais são os principais cuidados que você toma em sua rotina?
Tenho que evitar o sol, principalmente quando passo os remédios, caso contrário, não fazem efeito. Evito bastante sair de casa em dias muito ensolarados, mas há situações em que a minha mãe não pode resolver as coisas por mim, então, eu acabo indo.
Durante a sua infância e adolescência, você sofreu preconceito em função da sua aparência?
Sofri preconceito principalmente no ensino fundamental, porque foi o período em que ainda não me conheciam. A ictiose era uma coisa nova para eles, que ainda não tinham informação sobre o que era a doença na época. Por isso, os comentários maldosos eram comuns, mas nunca me desanimaram. Se houve algum momento em que eu quis me isolar, foi passageiro. Eu não desistiria de estudar por causa dos outros. Já no ensino médio, não tive muito problema, porque os colegas de classe eram pessoas que vieram comigo do ensino fundamental.
Qual foi o papel da sua família neste processo?
A minha família sempre me apoiou desde pequena. Mesmo em algumas situações em que eu me deparava triste, sempre foi o meu alicerce. Eles nunca deixaram que eu ficasse desanimada e sempre apoiaram meus sonhos. Minha mãe costuma me dizer: “Filha, se é isso o que você quer, vai, luta, corre atrás”.
Hoje, você mantém um canal no Youtube em que divide a sua história com os seus seguidores. Por que você decidiu entrar para este meio?
Na verdade, foi meio que inesperado. Meu amigo que estudava comigo vinha me falando: “Paloma, faz um canal. Conta a sua história. Faz vídeos sobre o que você gosta”. E eu respondia: “Não, tenho vergonha. Não sei o que as pessoas vão pensar e acho que isso não vai dar em nada”. Um dia, após chegarmos tarde da aula, ele falou: “Vamos gravar agora e pronto”. Eu disse: “Como?”. Ele foi e gravou, mas, a princípio, continuei com o pensamento de que não daria resultado. “Vou gravar para ver se ele para de me encher o saco” [risos]. Mas fui tendo um comprometimento maior e deu no que deu – o Cinderela Country. Cinderela porque ele sempre falou que “para nós [os amigos], você é a nossa princesa”. Já o country é porque eu sou do mundo sertanejo. Então ficou esse nome.
Os vídeos tratam a respeito do quê?
Eu discuto vários assuntos. Falo sobre a minha vida, maquiagem ou os lugares para onde vou. Conto toda a minha história ali. Hoje, estou com dois anos de canal e 128 mil inscritos. Atingi a marca dos 100 mil no começo deste ano. Geralmente, posto um vídeo por semana, mas quando não consigo atualizar, publico dois na semana seguinte para compensar a falta. Por conta do canal, fiz amigos no mundo todo. Vem falar comigo gente dos Estados Unidos e de Portugal. Eu fico até besta quando essas pessoas aparecem e falam de onde são, porque eu não imaginava todo esse alcance. Fico muito feliz.
Ao criar um canal no Youtube, você estava preparada para a repercussão negativa sobre a sua aparência?
Estava preparada sim. É claro que a proporção das pessoas que me admiram é maior, mas há sempre uma minoria interessada em fazer comentários maldosos. Eu simplesmente ignoro. Tenho o autocontrole de saber ignorar. Exceto ultimamente, quando recebi um “hater” no Instagram com o qual não soube lidar muito bem. Mas coloquei nas mãos de Deus e segui em frente. Graças a Ele, estou conseguindo ter esse autocontrole, porque não faço isso por mim, mas pelos outros. Se eu parar, como ficam essas 128 mil pessoas que me seguem e gostam do que eu produzo? Eu penso nelas também. Mantenho os comentários negativos lá e não faço questão de apagar. Na realidade, nem leio, vou deslizando a tela e deixo que passem despercebidos. A melhor parte é que, depois que entrei para esse meio, pude estar em contato com várias pessoas que têm a ictiose.
Em algum momento, você recebeu mensagens de pessoas com ictiose que estavam deprimidas com a vida?
Eu vejo cada mensagem que me deixa preocupada. Nunca tive motivos para reclamar da minha vida, graças a Deus, mas você vê outras pessoas que não têm esse mesmo pensamento. Já recebi mensagem de uma menina que era suicida e, após começar a ver os meus vídeos, decidiu procurar uma igreja e passou a agradecer mais a vida. Hoje, eu vejo que embora eu não conheça aquela pessoa, fiz parte dessa mudança.
Quais são as dúvidas mais comuns que os usuários enviam?
As perguntas que mais recebo são a respeito do que é a doença, se tem cura e se é contagioso. É muito importante lembrar que não é. Também me perguntam se os médicos autorizam a maquiagem em pessoas com ictiose. Autorizam, desde que o uso não seja diário, tendo em vista que a maquiagem prejudica a pele de qualquer pessoa. Em meu caso, não uso um tipo específico de maquiagem. É a comum mesmo. Nunca tive nenhuma reação, mas tomo o cuidado de passar somente quando vou gravar vídeos ou em ocasiões em que há a necessidade.
Fora do Youtube, qual é a reação das pessoas que te veem nas ruas?
Aqui em Pirapozinho, não encontro tanto problema, porque todo mundo me conhece. Mas quando vou a Prudente ou até mesmo em Campinas, sempre tem aqueles olhares, não de reprovação, mas de quem não sabe o que é aquilo.
Como são as suas experiências no campo acadêmico ou no mercado de trabalho?
Eu deixei a faculdade de Zootecnia, mas vou prestar vestibular de novo amanhã. Infelizmente, vi que não era o que eu queria. O maior desafio que eu enfrentava era o sol, já que a área demandava muitas aulas práticas no pasto e em meio aos animais. Independente do meu tratamento ser caro, eu arco com os meus gastos. Recebo o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] desde pequena. Aos 18 anos, não queria mais depender dos meus pais ou do governo, porque sempre fui independente, então, acabei indo atrás de serviço. Me falavam que eu perderia o benefício, mas não me preocupei. No entanto, senti muita dificuldade de entrar para o mercado em função do preconceito por parte dos comerciantes. Cheguei a levar currículo, mas me falavam que não havia vaga. Quando eu retornava na semana seguinte, tinham contratado pessoas. Eu ficava quieta.
Para encerrar, registre os seus planos para o futuro.
No campo profissional, meu plano é exercer Direito, que sempre foi o meu sonho desde pequena. Acabou não dando certo no caminho, mas agora vou tentar o que gosto. Na vida pessoal, pretendo continuar com o Youtube e crescer dentro desse meio – não pela fama, mas para continuar levando a minha realidade para outras pessoas. Mesmo no mundo globalizado em que vivemos, muitos ainda desconhecem a doença. E também pretendo realizar alguns sonhos que acho que quase todo mundo tem, como viajar para fora e conhecer outros países.