A amputação

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 10/01/2023
Horário 05:30

Foi tudo muito rápido. Quando percebi, só ouvi o barulho seco dele, aterrizando ia saber onde e como. 
Meu celular havia acabado de cair em um bueiro e em questão de segundos uma espada fria transpassou minha alma de fora a fora. 
Não sabia o que fazer, comecei a suar frio. Instintivamente tentei enfiar a mão e depois a cabeça no bueiro, que era do tipo boca de lobo, daqueles que se abrem nas guias das sarjetas. 
Nada, era pequeno demais, impossível. 
Pensei em pedir ao meu filho Pedro para tentar passar a cabeça e o tronco pelo buraco e logo percebi que esta ideia estúpida só tinha uma razão: perder o celular hoje é como perder um membro do próprio corpo. Quase uma amputação. 
Minha mente tentou em milésimos de segundo compensar a situação, avaliando que não seria tão ruim assim perder o celular, mas sem chance, logo o desespero voltou. 
O teórico da comunicação canadense, Marshall McLuhan, escreveu em 1964 o livro “Os meios de comunicação como extensões do homem” e ali ele apontou que os meios se tornariam em pouco tempo como próteses técnicas de nossos corpos. Foi um desdobramento de outras acepções teóricas deste visionário, que já havia trabalhado anteriormente, no livro “A Galáxia de Gutenberg” (1962), o conceito de Aldeia Global, que segundo ele seria o estágio do mundo a partir do avanço da tecnologia e dos meios de comunicação. Muito questionado na época, hoje vivemos de fato como em uma aldeia. Os meios nos aproximam. Falamos com alguém na Mongólia da mesma forma como nosso vizinho de frente no bairro.
Mas o conceito dos meios como extensão do homem nunca foi tão claro tendo em vista a presença do celular em nossas vidas. Ter um celular não é mais possuir apenas um aparelho. É ter um membro a mais no corpo, uma prótese, que você permite apenas que fique longe por distância e tempo muito seguros.
Daí o desespero em perdê-lo. 
Não ter mais o celular significa o quê para você? Tudo bem que a tecnologia de armazenamento em nuvem hoje em dia facilita a recuperação de quase 100% dos dados, mas não é só isso. 
É a nossa vida que se vai, que fica suspensa, absolutamente em risco. 
São nossas fotos, nossos contatos com todos que precisamos falar e os poucos vamos dependendo totalmente dele porque não guardamos na cabeça mais os números ou dados de quem quer que seja. E se você sabe mais de cinco números de celular de cor e salteado, é um privilegiado! 
Enfim, o nosso mundo todinho está ali, nesta caixinha de aço, vidro e componentes e talvez por isso, pela adrenalina toda em não o perder, é que junto com mais três pessoas eu fui capaz de arrastar uma placa enorme de concreto na calçada, pular dentro de um buraco com quase dois metros de profundidade, e recuperar, são e salvo.
Estava seco, a salvo, e pronto para funcionar da maneira que McLuhan sempre previu: como a parte do meu corpo que se desprendeu de mim, como a extensão do meu corpo. 
 

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