Corpo, dádiva de Deus, destinado a eternidade
Rubem Alves
A Quaresma, importante tempo do calendário atual, deve como preparação da Páscoa Cristã ter como central em sua teologia o corpo. É a partir deste eixo hermenêutico que se mobiliza a vida e que se estrutura o mundo.
Sem este poder magnífico que é imanente no ser humano, a espiritualidade seria impossível, uma vez que o mundo é estruturado e compreendido como uma extensão do corpo, sede de conhecimento que não se apresenta então como neutro em momento algum, como desejava René Descartes.
O mundo é a vida e o que se conhece dele, nada mais é do que reflexo/imagem do próprio corpo.
Assim, toda a teologia deve necessariamente reverberar o corpo e a humanidade.
Mais do que o habitat da existência humana, o corpo possui endereço certo e nos situa no espaço da vida, identificando cada ser humano como pessoa criada à imagem e semelhança de Deus.
A transcendência não existe além do mundo do corpo, tornado por conseguinte, como histórico e social.
O compromisso da Quaresma, então, é apontar para encarnação de Jesus Cristo. Eis o mistério da fé: linguagem e corpo tornam-se elos inseparáveis porque a Palavra se fez carne (corpo) e habitou entre nós.
Deus opta por deixar o verbo (logos/ideia) e se tornar carne. Ele ganha visibilidade em Jesus, aquele que se mistura com a gente e se humaniza como qualquer um dos seres humanos.
Deus se fez carne. O amor se fez corpo. No mistério da encarnação, Deus se entrega e confessa os seus desejos admitindo, a necessidade de comungar de perto com a humanidade, o mesmo pão e o mesmo cálice de sofrimento.
Algumas vezes ele se parece com o pai que sai ao encontro do filho perdido - em outras, assemelha-se ao amado que possui uma amada - Ele é o noivo que vem buscar a igreja, a noiva - mas, não há como evitar o seu desejo em experimentar o contato próximo e físico com a humanidade.
A humanidade se faz grávida do amor maior. Amor que se doa, sacrifica e se consome: cura cegos, coxos e doentes; toca os corpos e se deixa tocar por outros corpos iguais ao seu; come com pecadores, atende as prostitutas, ajuda os fracos e identifica-se com os marginalizados...
Ele se dá a ponto de morrer. Pão e vinho. Corpo e sangue. Eis o sinal visível da graça divina. Deus se encarna, mas se parte e se reparte. O corpo que nasce, sofre e falece. Contudo, o corpo que nasce, padece e morre, também ressuscitará!
Ressurge no mundo a esperança, projetada na própria existência, no aqui e no agora.
O corpo, velho (ou jovem), doente (ou são), renasce para o tempo novo do Espírito que novamente sopra a vida, fazendo um novo jardim para a humanidade redimida pelo menino que Deus deu.
A realidade corpórea não pode ser mantida sob suspeita readquirindo a sua espiritualidade apenas em tempos quaresmais.
O mistério da encarnação não é coisa abstrata, mas uma dimensão da experiência humana. Deus também é corpo de Cristo que deve, no exercício da fé/espiritualidade, ser apreendido pelo homem e pela mulher pela mediação da linguagem simbólica que acontece no decorrer do tempo e ao longo da vida.
Não à guerra, à morte de inocentes e à violência do corpo. Viva a Quaresma e a vida!