Corpo-território

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 24/08/2025
Horário 05:00

Na condução, ele divide espaço com tantos outros corpos cansados. Ombros se encostam, respirações se confundem, o calor se multiplica dentro do ônibus lotado, que percorre trajetos de sempre: a praça onde jogava bola quando menino, a esquina da venda que já fechou, o campo de terra agora tomado por prédios, lugares que o corpo ainda reconhece mesmo quando a paisagem insiste em mudar. Uma senhora resmunga: — Esse ônibus não chega nunca vazio... Ele responde com um sorriso contido: — Ônibus vazio só passa quando a gente não precisa dele.
O corpo dele se ajusta ao solavanco, encontra brechas mínimas para caber naquele espaço apertado. Não é só transporte: é convivência forçada de mundos que quase não se olham. Mas ele guarda no peito algo que nem a cidade mais hostil conseguiu roubar. Lembra da voz da mãe no terreiro, rezando baixinho, misturada ao cheiro de vela e incenso. Lembra das ladainhas na festa de Santa Bárbara, quando a comunidade inteira parecia respirar junto. Lembra da primeira vez que ouviu o batuque atravessar a noite. “Vem, menino, dança”, disse o tio, e o coração bateu no compasso do tambor. Desde então, aprendeu que corpo também é tambor: vibra, ecoa, resiste.
No trabalho, ele é peça essencial de uma engrenagem que não o reconhece. O crachá o reduz a número, mas sem ele a esteira não anda, o prédio não sobe, a cidade não respira.    Botas gastas que carregam peso, que se equilibram em andaimes instáveis, que se movem entre o pó da brita e o ferro quente. Quem olha de fora só enxerga o arranha-céu erguido; não vê a pele que se abriu, a coluna que se vergou, a vida que se gastou para sustentar aquela paisagem.
No intervalo, ele abre a marmita. O colega brinca: “Divide aí esse frango, que aqui só tem ovo duro”. Ele retruca, passando o garfo: “Frango é pouco, mas a amizade tempera”. E logo as risadas tomam conta do almoço. O refeitório vira roda de conversa, quase um quilombo improvisado no meio da fábrica. No meio do cansaço, os amigos sabem partilhar o que têm, e isso basta para reinventar o tempo.
À noite, antes de dormir, um ponto cantado ilumina o quarto simples e a filha pergunta: “Pai, por que o senhor reza todo dia?” Ele responde devagar: “Pra não esquecer que amanhã existe”.
É no corpo dele que a cidade se escreve. Cada marca na pele é memória de trabalho. Cada dor no joelho é lembrança de caminhos percorridos. Corpo-território. Corpo que carrega séculos de luta. Corpo que insiste em existir.

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