Da janela do meu quarto

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 30/05/2021
Horário 04:30

Eu até me esforço em escrever a respeito de situações banais, como simplesmente a minha condição de observador da rua pela janela do meu quarto. Mas na medida em que as palavras escorrem dos meus dedos para a tela do computador, eu sou traído por uma música que começa a soar em meus ouvidos e, suavemente, me leva para a paisagem através da janela. Agora, ouço nitidamente a eterna voz de menino de Lô Borges sussurrando “vejo uma igreja, um sinal de glória...quando eu falava dessas cores mórbidas/quando eu falava desses homens sórdidos/quando eu falava desse temporal/você não escutou....”. E desses devaneios me deparo com a turma de Geografia da Unesp de 1997 em frente à Igreja de São Francisco de Ouro Preto. 
Todos os trabalhos de campo que realizei com meus alunos sempre tiveram uma música representativa. Como não poderia deixar de ser, as paisagens montanhosas de Minas Gerais pediram as canções de Lô Borges. Alimentávamos a fantasia de que ele havia feito a música da janela de uma república de estudantes localizada ao lado daquela igreja. Não importa que tempos depois Fernando Brant tenha explicado quais foram as circunstâncias reais nas quais os dois amigos criaram os primeiros versos, lá na casa de seus pais em Belo Horizonte. Não! Estávamos ali e com Lô Borges nos encontrando com as maravilhas do Mestre Ataíde. Especialmente com os detalhes da Assunção da Virgem preservados no teto da Igreja de São Francisco. 
Que fascinante aqueles meninos e meninas deitados nos bancos da igreja e tecendo relações entre as cores vibrantes dos anjos, madonas e santos mestiços com a paisagem cultural, a memória e o lugar! E Lô Borges insistia soar lá fora: “você não quer acreditar, mas isso é tão normal/um cavaleiro marginal/banhado em ribeirão”...
Mal sabiam os meus alunos o significado profundo daquele momento para mim. Eu queria que eles acreditassem que poderiam se encantar com o conhecimento. E estavam todos ali empolgados com as interfaces da geografia e arte. Livres, no livre pensar! Por instantes, eu lembrei da minha cópia do “Clube da Esquina”, cuja a primeira faixa do lado B temos “Paisagem da janela”. Impossível apreciar esta música sem considerar o conjunto da obra. Documento vivo da geração musical de Milton Nascimento, um mix do regionalismo mineiro e fontes bem distintas: ora Beatles, meio “jazzy”, super bossa nova. Sem dúvida, é o disco que marcou a minha passagem para a vida “sem lenço e sem documento”!
É incrível acreditar que uma música escrita há quase 40 anos conecte o jovem que fui, aqueles meu alunos de Ouro Preto e o momento que as pessoas estão vivendo hoje. Diga-se de passagem, Lô Borges desafiou seus fãs a postarem diferentes versões da música e “Paisagem na janela” bombou nas redes sociais em plena pandemia, com milhões de curtidas no mundo inteiro....você pode não acreditar. 
 

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