Imagine o instante em que o metal invade a carne. Um impacto que não é só físico, mas o rompimento violento de um mundo inteiro. O corpo, antes inteiro, é lançado como um objeto, e a gravidade o prende sob o chassi frio de um carro. E então começa a viagem ao inferno. O asfalto, áspero e abrasivo, deixa de ser uma superfície e torna-se uma lixa gigante, uma serra sem dentes que trabalha com o peso implacável de uma tonelada de aço. Cada irregularidade do solo é transmitida como um golpe de faca, cada pedra é um estilete afiado. A pele não se rasga simplesmente: ela se desfaz, é esfolada e esmagada. Os músculos, feitos para contrair e mover, são esgarçados, triturados e as fibras separadas com uma violência meticulosa. Os ossos se racham, estilhaçam, são reduzidos a pó e farpas.
Bem, desculpe oferecer um texto tão cru e violento, mas só assim talvez você possa ter uma pequeníssima noção, muito ínfima mesmo, da dor a que foi submetida a jovem Tainara Souza Santos, atropelada e arrastada viva (!) por quase um quilômetro pelo carro dirigido por Douglas Alves da Silva, em São Paulo. Ela teve que amputar as duas pernas e até a tarde de ontem estava internada em estado grave.
O caso de Tainara, definitivamente para mim, não foi só fruto de mais um acidente ou uma discussão de casal.
Esta tentativa de feminicídio é hoje a ponta mais visível do reflexo e do resultado de um movimento arquitetado e gerido em fóruns, grupos de conversa, em vídeos de gurus e em discursos disfarçados de "autoajuda masculina", mas que no fundo prega que os homens precisam se impor como seres dominantes sobre as mulheres.
Uma misoginia que não é nova, mas ganhou escala ainda maior no mundo digital e é responsável sim por naturalizar a violência de gênero. Mulheres são cada vez mais agredidas por homens que não se sustentam em suas masculinidades, mas que se sentem aptos a agir porque se descobrem junto a uma manada digital de seres iguais.
Eu não sei se Tainara vai sobreviver, e se sobreviver com quais traumas terá que conviver para o resto da vida. O que eu preciso externar, como homem que sou, é a vergonha e o inconformismo em ver que o nosso mundo parece involuir a cada dia que passa, com influenciadores como aqueles do movimento Red Pill ganhando rios de dinheiro nas redes sociais pregando a superioridade masculina. Lucram com este modelo permissivo das mídias e são responsáveis indiretamente por mais e mais vítimas.
Sexta-feira (28), um dos nomes relacionados a este movimento no Brasil, o influencer Thiago Schtuz, conhecido como Calvo do Campari, foi preso sob acusação de violência doméstica. Quem diria. O vídeo apresentado nas redes pela vítima é um atestado de culpa, mas ele já está solto e com certeza expôs a própria versão aos seus mais de 400 mil seguidores na internet. Resta saber se pediu desculpas pela violência ou se portou como vítima. Não se assuste com a segunda opção, não. Muitos de seus asseclas o legitimam a fazer justamente isso.