Em busca de um tema

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 19/10/2025
Horário 05:00

Procuro um tema para a crônica de domingo. Penso em escrever sobre o amor — mas o amor anda cansado. Foi transformado em aplicativo, em curtida, em contrato com validade. Quem sente demais é “intenso”; quem ama devagar é “difícil”. E o silêncio entre dois olhares virou desconforto. É preciso dizer algo ou quem sabe escrever sobre o tempo livre. Caminhar sem destino, observar o banal como quem descobre um segredo. Mas o tempo livre tornou-se suspeito: quem não produz, atrasa; quem descansa, culpa-se. A contemplação virou desperdício. 
Abro o jornal: sessenta mil mortos na guerra. Sessenta mil. São milhares de crianças. Dito assim, parece a previsão do tempo. O repórter fala, o apresentador sorri — e seguimos para o próximo bloco: “E agora, o tempo para o fim de semana.” Do outro lado do muro, a vizinha grita com o marido. O rádio toca uma música antiga. Tudo se mistura: a violência, o afeto, o costume, a carne do churrasco na grelha. E ninguém se espanta. A vida virou manchete. A dor, estatística. O amor, algoritmo. Até a lembrança virou post e a saudade, mercadoria.
Fecho o computador. As telas repetem a mesma ladainha: tragédia, milagre econômico, escândalo, reality show. Tudo junto, tudo igual. A emoção e a indiferença desfilam lado a lado — como se o coração e o like fossem a mesma coisa. É a bricolagem: o humano montando o mundo com restos. Restos de sentido, pedaços de memória, fragmentos de esperança. Talvez seja isso o que nos resta — colar os cacos e seguir adiante.
Respiro. Lembro de Hannah Arendt, sua “banalidade do mal” e os atos terríveis também cometidos por pessoas comuns, burocratas que cumprem ordens. Talvez o que vivamos agora seja a banalidade de tudo. O mal, o bem, o belo — tudo reduzido a segundos de atenção. O medo da violência, do esquecimento, do amanhã que nunca chega. Como quem corre num sonho e não sai do lugar.
E eu aqui, cronista de domingo, tentando achar um tema que não se dissolva antes do ponto final. Há quem ainda plante hortas, leia livros inteiros, ouça uma música até o fim. Há quem caminhe sem fones, quem olhe o pôr do sol sem registrar. Talvez o tema esteja aí — no que ainda escapa à pressa, na tentativa de segurar o mundo por um fio.  Pego a caneta. Escrevo, apago, recomeço. O papel branco me devolve a pergunta: — “E então, o que você tem a dizer?” Talvez nada. Porque escrever — como viver — é esse exercício de procurar sentido no meio da poeira. No alto da página, escrevo o título: “Em busca de um tema.” Fecho o caderno.
 

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