Eu onírico

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 12/10/2025
Horário 05:02

O ato de escrever nasce da escuta. Nesse vai e vem entre o que se absorve e o que se expressa, numa tentativa de organizar o caos em um traço, em uma frase, em uma história. É um “ler” ampliado, sensível, atento.
Seguindo esse caminho, me transformo em arte e pensamento, música errante, ouvido pensante, espaço e gênero. Sou o que olha, mas não pode alcançar. Sou este país que queima livros, filmes e florestas... e parece que desaprendeu a reverenciar seus artistas e mestres! Sou a famosa Canaã (terra prometida) fundada por gaúchos lá no Brasil central. Sou das comunidades de remanescentes de quilombolas que não podem ser acessadas por estradas asfaltadas. Mas eles estão lá, com a sua produção de farinha, de pequi e seus reisados e lundus. Muita, mas muita fé em São José.
Sou o verbo forjado do suor ou do barro, moldando as palavras antes de serem ditas. Cidades, mares, povo, rio. Sou a terra fértil, a Lua cheia e a cachoeira na forma de véu da noiva. Sou a devoção a um santo, a promoção de missas, festas, leilões e bailes que permitem outras formas de convívio. Sou o mutirão, o auxílio mútuo e a ação, que garante uma rede de troca de favores e mantém os laços mais solidários entre os vizinhos.
Sou a atenção flutuante e seus labirintos da memória afetiva. Uma janela a partir da qual eu olho para o mundo. Uma empresa em insolvência, uma concessão que não funciona, um sistema ineficiente que concorre com o tempo de deslocamento a pé entre os pontos de origem e destino... Sou a cidade que cresce e passa por cima de seus cursos d’água. Microorganismos existentes em reservatórios silvestres transformados em agentes patógenos nos circuitos humanos. Gigantes tempestades de areia. Queimadas e escassez hídrica. 
Sou as conchas de diversos tamanhos e cores. Embalagens abandonadas por banhistas mal-educados. A ideia de tempo que não está separada da ideia de espaço, pois sem a ideia de espaço não existe o tempo. O mar e o rio como marcadores do tempo, porque transformam o espaço e permitem o seu conhecimento. 
Sou a semeadura. É hora de levantar e arrepiar. Sou a existência material da cidade que aparece como um dado fundamental da compreensão do espaço enquanto presença dos tempos que se foram e permanecem através das formas e objetos. Sou simplesmente a explosão da vida diante do espelho. Sou o bêbado de sambas e tantos sonhos, como bradou Paulinho da Viola. Muito samba no pé, percussão variada – pandeiro, atabaque, surdo, repique de anel, tamborim e agogô. Tudo de novo, de novo, de novo.


 

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