Homens e caranguejos

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 03/09/2023
Horário 05:00

Estava parado no cruzamento de uma rua central da nossa cidade quando um senhor de muita idade aproximou-se da janela do meu carro para pedir algo para comer. Olhos profundamente tristes. Pés descalços com unhas bem cumpridas que arranhavam o asfalto. Eu havia chegado há poucas horas de São Paulo e, durante frações de segundos, pensei que estava muito próximo do escritório onde trabalho na Paulicéia Desvairada. 
É lógico que não tem comparação a dimensão do flagelo da fome na região metropolitana, mas logo retomei a consciência de que esse problema está em toda parte. Outro dia foi publicado no jornal que 39% das famílias do CadÚnico estão em situação de extrema pobreza em Presidente Prudente, o que representa cerca de 21 mil munícipes em condição de insegurança alimentar! Não há nada mais degradante do que viver com fome permanente, a fome crônica que deprime e angustia... É a negação da própria existência humana. 
Talvez você considere banal a ideia de que a fome não é um processo natural, mas fruto das condições sociais. Mas foi o médico-geógrafo pernambucano, Josué de Castro, quem sistematizou essa ideia, primeiro na obra “A alimentação brasileira à luz da Geografia Humana”, já em 1937, onde ele já indicava a necessidade de estudar a geografia para formar uma visão de conjunto dessa tragédia social. Depois com a sua grande obra “Geografia da fome”, lançada em 1946 e traduzida em mais de 25 idiomas, influenciando a posição dos organismos internacionais diante do mapa mundial da fome. 
No romance “Homens e caranguejos”, publicado em 1967, Josué de Castro descreve a sua experiência diante das pessoas que viviam da captura de caranguejo na lama dos manguezais à margem do Rio Capibaribe. Lá estavam os caranguejos “espumando de fome à beira da água, à espera de que a correnteza lhes trouxesse um pouco de comida, um peixe morto, uma casca de fruta”, dejetos do esgoto. Mas também “de uma população inteira escravizada à angústia de encontrar o que comer”.
Numa crônica antiga eu citei três livros que guardo com especial carinho: “Casagrande e Senzala”, de Gilberto Freyre; “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda; “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Júnior. De fato, estas são obras seminais que exprimem o pensamento crítico e a análise social que impulsionaram o Brasil a sonhar com o futuro como uma nação mais livre e democrática. Sem dúvidas, a grande obra de Josué de Castro deve também ganhar destaque... Afinal, é com ele que se aprende como “o corpo e alma [dos brasileiros] se foram impregnando do suco dos caranguejos”. 
 

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