Nós, o Sul Global

OPINIÃO - Helber Henrique Guedes

Data 16/08/2025
Horário 04:30

Em Buenos Aires, tenho caminhado muito, conversado com várias pessoas e conhecido espaços culturais, como o Centro Cultural Morán — um lugar construído coletivamente, mantido pela força da comunidade e pelo trabalho voluntário. Foi lá que participei de uma aula do professor Manuel Gonzalo sobre Índia, Brasil y los desafíos y significados del Sur Global.
Antes de 1800, a Índia vestia o mundo com seus tecidos de algodão finos, macios e coloridos. Em poucas décadas, a força da Revolução Industrial na Inglaterra e o poder britânico destruíram essa indústria, inundando o mercado indiano com tecidos ingleses. A Índia foi transformada em fornecedora de matérias-primas e mercado consumidor, enquanto a Inglaterra acumulava capital e tecnologia. O centro prosperava; a periferia — que somos nós — ficava com a exploração e a dependência.
O Brasil conhece bem essa história. Por mais de três séculos, sob a ocupação e exploração portuguesa, fomos foco de exportação: pau-brasil, açúcar, ouro, café. Nossas riquezas saíam, enquanto aqui ficavam a escravidão, a desigualdade e a falta de soberania. Essa herança de violência e espoliação molda até hoje a economia, a sociedade e a forma como somos tratados no mundo.
O que chamamos hoje de Sul Global nasce desse passado: é o conjunto de países que carregam a memória e as consequências da exploração, mas também a capacidade de se articular para mudar seu lugar no sistema internacional.
Nos últimos dias, vimos os Estados Unidos imporem tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, atingindo setores como café, carne, frutas, químicos e vestuário. A justificativa oficial mistura argumentos comerciais e pressões políticas, mas o efeito é claro: limitar o acesso do Brasil ao mercado norte-americano e enfraquecer nossa economia. É uma versão contemporânea do velho jogo centro–periferia.
A resposta do governo federal tem sido defender a soberania brasileira, apoiar os setores afetados e, sobretudo, fortalecer alianças com outros países do Sul Global. Para que possamos responder em bloco, com mais peso e mais voz.
O geógrafo Milton Santos, em “A Natureza do Espaço”, lembra que “a rede é também social e política, pelas pessoas, mensagens, valores que a enfrentam. Sem isso, e a despeito da materialidade como que se impõe aos nossos sentidos, a rede é, na verdade, uma mera abstração”. Essa visão nos ajuda a pensar o Sul Global não apenas como um conjunto de países com um passado de exploração em comum, mas como uma rede viva, feita de histórias, lutas, alianças e valores compartilhados. Para que essa rede exista de fato — e não como abstração — é preciso mantê-la no presente, fortalecê-la nas relações internacionais e reconhecer que nossa força está justamente na conexão entre nossas nações. 
Estar aqui, em Buenos Aires, e ouvir essa análise no Morán me fez perceber que o intercâmbio que estou vivendo não é só acadêmico. É também político e histórico. É entender que, quando falamos de Brasil, Índia ou Argentina, falamos de nações que ainda lutam para romper com uma estrutura de poder mundial que foi feita para nos manter no lugar que o colonialismo escolheu. E que, se queremos mudar essa história, precisamos aprender, nos unir e agir — a partir do nosso lugar no mundo.

Referência Sugerida 

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. São Paulo: Edusp, 2023.
 

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