O beijo

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 23/10/2022
Horário 04:30

“— Olha. Agorinha, na Praça da Bandeira. Um rapaz foi atropelado. Estava juntinho de mim. Nessa distância. O fato é que caiu. Vinha um lotação raspando. Rente ao meio-fio. Apanha o cara. Em cheio. Joga longe. Há aquele bafafá. Corre pra cá, pra lá. O sujeito estava lá, estendido, morrendo 
— E daí?
— De repente, um outro cara aparece, ajoelha-se no asfalto. Apanha a cabeça do atropelado e dá-lhe um beijo na boca. (confuso e insatisfeito) — Que mais? (rindo) 
— Só. (desorientado) 
— Quer dizer que um sujeito beija outro na boca e não houve mais nada. Só isso? “

Assim começa a famosa peça teatral de Nelson Rodrigues, publicada em 1961. A trama se passa no Rio de Janeiro, quando um homem ferido de morte pede um último desejo a um cidadão que se aproxima. Um delegado corrupto e um jornalista sensacionalista transformam o beijo inusitado numa “bomba” para desviar a atenção da opinião pública de um caso de agressão, algo que conhecemos hoje como fake news. 
Eu tomei contato com o famoso beijo através da adaptação de Bruno Barreto para o cinema em 1981. Mas nada melhor do que ler a peça escrita pelo próprio Nelson Rodrigues. É incrível como o texto é friamente cruel e revelador da dura face conservadora, puritana e preconceituosa da sociedade brasileira. 
Duas novelas da TV Globo exploraram o tema mais recentemente. Quem não se lembra da polêmica que envolveu o beijo de língua entre os atores Malvino e Leicam em “A Dona do pedaço” e o beijo gay no final recente de “Pantanal”? Infelizmente, passados quase 60 anos, vemos poucas mudanças. Salve o Nelson Rodrigues!
 

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