Realizava-se, na excelentíssima universidade projeto que envolvia 18 dezenas de estudantes e outra parte considerável da comunidade da pequena e curiosa, porém pouco iluminada, cidade do interior. Coordenado por nobres doutores, que trabalhavam com afinco, em horário comercial, é preciso dizer, o projeto envolvia enormes dificuldades de organização e excelentes estudantes foram mobilizados para cívica tarefa de fazer cooperar a universidade e a sociedade.
Os melhores estudantes foram selecionados. O primeiro deles, veterano do curso, estava envolvido em ao menos 27 projetos diferentes, de maneira que recebeu a alcunha de “ocupado”. O segundo, calouro, não tinha ocupações claras, a não ser as usuais de aluno ingressante, ou seja, nenhuma. Apesar dessa aparente incompatibilidade de gênios, talentos e afazeres, a equipe, quando reunida, era diligente e comprometida e todas as demandas eram prontamente atendidas, no início do projeto.
Com o tempo, entretanto, as diferenças nos hábitos cotidianos foram se tornando problemáticas. O “ocupado” era raras vezes encontrado, de maneira que suas demandas ficavam à revelia, a esperava de tempo livre, que quase nunca dispunha. Por isso, os nobres docentes recorriam, quase sempre, ao calouro, para que esse realizasse as inglórias, porém, necessárias tarefas. Contudo, enquanto as demandas eram repassadas, invariavelmente, em horário comercial, as respostas, por sua vez, vinham, quase sempre, na calada da noite, quando não, nas madrugadas.
Esse expediente causava contratempos contornáveis, embora desagradáveis. Em busca de dirimir o descontentamento entre as partes, fez-se solene reunião, onde, em um átimo, foi esclarecido que o calouro que tinha por hábito ir às aulas de manhã e invariavelmente, dormir toda a tarde, o que o impedia de atender às demandas no horário regular, inconveniente que poderia ser relativizado.
Semanas depois, coube ao dorminhoco a tarefa de digitar notas. Como membro, sua própria nota deveria ser preenchida e o mesmo atribuiu, a si mesmo, nota 0. Questionado, o estudante via-se em um turbilhão de reflexões e possivelmente, sentia-se culpado por dormir quase todo o horário destinado ao projeto, ou mesmo, sentia-se com autoestima prejudicada por dormir quase sempre. Encorajado a ler Marx ou mesmo Freud, para melhor compreender as razões subjetivas por trás daquela nota 0, enfim, o mesmo se pronunciou, da maneira que se segue:
____ A nota 0 não é apenas um número, mas um grito de angústia de alguém que se vê em desacordo com os valores que internalizou. Ao compreender que o sofrimento psíquico está imerso em um contexto social adoecedor, torna-se possível criar alternativas formativas mais humanas, que valorizem o tempo do descanso, do cuidado e da escuta. É urgente repensar as práticas avaliativas e as expectativas dirigidas aos estudantes bolsistas, reconhecendo que o processo de formação deve incluir, necessariamente, espaço para o erro, para o descanso e para a reconstrução subjetiva.
____ Que bela análise, realmente pode ser algo relacionado, respondeu o professor, emendado pelo outro, que disse:
____ Precisamos regulamentar uma nota para cochilos vespertinos.