O efeito pastel

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 22/04/2025
Horário 06:00

Durante um tempo, bem no comecinho da minha carreira como repórter, eu ganhei um apelido: “Pastel”. Vou explicar.
Eram quase 18h30 e o dia caminhava para o fim na redação do jornal quando o telefone tocou bem ao meu lado. Era da Polícia Rodoviária e o tenente avisou que uma pessoa havia sido atropelada e morta naquele instante, quase em frente à base, ali pertinho da Cidade da Criança. 
Fomos para lá, eu e o fotógrafo, e assim que chegamos eu já avistei de longe o corpo embaixo do lençol de alumínio que normalmente é usado. Cena comum na vida de um repórter e logo tratei de começar a apuração porque, na verdade, queria mesmo era ir embora. 
Tratava-se de um senhor de pouco mais de 50 anos. Era andarilho e foi atingido por um automóvel conduzido por um representante comercial. Não havia muito mais informações e fui buscando alguns dados e ouvindo conversas paralelas para conseguir algo a mais. 
Foi quando estava perto de dois policiais e um deles, logo depois de olhar o corpo, se levantou e disse ao outro: “Foi efeito pastel”. Eu anotei a expressão na hora e logo marquei também o horário do atropelamento, que tinha sido por volta das 18h, horário em que a luz do sol estava bem amareladinha, já quase indo embora. 
Olhei ao redor e o que pensei se confirmou ainda: tons pasteis ainda envolviam o ambiente, com o sol logo se pondo, mas especialmente com uma luminosidade baixa, que confunde quem tenta enxergar mais longe. 
Adicionei isso ao texto, ressaltando ainda que o “efeito pastel” poderia ser a causa principal do acidente. Fechei o material, mandei para edição, ganhei aprovação e tchau: fui para casa. 
Dia seguinte ao pisar na redação, a minha chefia já me chamou delicadamente para a sala dele: “Mancuzoooooooooo!! Vem já aqui!”. 
Pelo tom de voz, imaginei que a coisa era para o que chamávamos de BHI. Em tempo, há duas siglas importantes em uma redação: BHI, que quer dizer Bronca Humilhante Individual, ou BHC, que é Bronca Humilhante Coletiva. O caso era individual. Era comigo. 
Cheguei lá e já ouvi: “Pô, quer acabar comigo?”. Respondi que não mesmo, que nunca tive esta intenção e que ele era um chefe maravilhoso e nem terminei de mandar os elogios que poderiam me salvar, o cara emendou: “De onde você tirou esse “efeito pastel”? Você acha que nossos leitores precisam ler isso logo cedo, no café da manhã?”.
Fiquei intrigado: “Ué, normal. Efeito pastel é o efeito de luz pastel de final do dia, que dificulta a visão dos motoristas e por isso o cara foi atropelado”. 
Bem, vou amenizar o que ele disse para preservá-los: “Mancuzo, às vezes acho que há algum problema com sua capacidade intelectual”. Entendeu o que ele disse, né? Sim, foi isso, mas com palavras bem mais diretas. 
Mas aí ele completou: “Efeito pastel, cara, é quando uma pessoa é atropelada uma vez, o corpo fica no asfalto, e vários outros carros passam por cima. A vítima termina parecendo um pastel amassado. E agora imagine alguém comendo um queijo quente de manhã, prensadinho, ou até um pastel mesmo e lendo esse seu texto?”
“Nossa, rapaz! Sabe que você falando assim faz mais sentido? Olha só...”. 
Daquele dia em diante eu não dei mais bobeira e aprendi que em uma apuração jornalística, por maior ou menor que seja, a gente precisa sempre confirmar tudo que ouve das fontes e não sair por aí escrevendo ou vai ficar com cara de pastel na frente de todo mundo na redação.  
 

Publicidade

Veja também