O que eu vi na UTI da Santa Casa

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 06/04/2021
Horário 06:30

Assim que o padre chegou à porta da UTI, fez-se um silêncio enorme. Só era possível ouvir os sinais sonoros dos equipamentos. Enfermeiros, auxiliares, fisioterapeutas, médicos e funcionários que estavam por perto fizeram o sinal da cruz diante do Santíssimo. Alguns só ajoelharam e fecharam os olhos. Outros suspiraram e tinham o olhar lançado no vazio. 
Não havia necessidade de adivinhar pensamentos e tampouco importava a religião de cada um. O que se pedia em cada uma daquelas orações era pouco: alívio e ajuda. 
Eu, com a câmera fotográfica na mão, estava ali como voluntário da Pastoral da Comunicação, mas pouco fiz. Os meus olhos marejaram e por baixo de todos os paramentos de proteção que me cobriam, senti subir um arrepio frio, cortante, de rasgar a alma. Poucas vezes em minha vida como jornalista assisti a uma cena tão dura, a um clima tão pesado e posso te garantir que já estive em lugares e participei de momentos em que a gente coloca em dúvida os propósitos da nossa existência neste mundo. 
O que eu vi na UTI da Santa Casa foi a nítida certeza de que não temos a mínima noção da guerra que está sendo travada entre vida e morte dentro dos hospitais. Mas, olha, não temos a menor noção.
O que eu vi na UTI da Santa Casa foi um exército de homens e mulheres que não se desespera, mas que está cansado. Não do trabalho em si, porque disso nunca arregaram, mas de não serem ouvidos e de verem tanto descaso em um país que já passou de um milhão de casos e mais de 300 mil mortes e ainda insiste em se aglomerar em imensas festas clandestinas, rolês aleatórios ou não se planejar. 
O que vi na UTI da Santa Casa foram máquinas trabalhando no lugar de pulmões comprometidos.
O que vi na UTI da Santa Casa foi a luta silenciosa dos próprios pacientes e que de certa maneira é ensurdecedora diante da agonia da morte, de estar no limite de tudo. Vidas que até ontem podiam dar gargalhadas, mas que hoje rastejam por um pouco de oxigênio.
O que vi na UTI da Santa Casa foi a dor e a angústia de quem espera lá fora por uma notícia, que treme ao perceber o celular tocar, que reza e chora para que essa doença não vença. Pelo menos não daquela vez.  
O que eu vi lá na UTI é suficiente também para um desabafo: para o inferno com nosso individualismo e nossas ideologias. Já passou da hora de parar com idiotices nas redes sociais, de fazer postagens raivosas e ridículas, de defender ou atacar políticos e celebridades que não vão ajudar em absolutamente nada se essa doença traiçoeira nos pegar. Para o inferno também com esse povo aí que fica achando que o problema todo não é o vírus e sim as medidas de contenção e combate. No fundo, se fizer um rapa bem forte, tem um monte deles que é só politiqueiro barato de WhatsApp ou que banca de bonzão, mas passa pano para muitas situações erradas. 
O que eu vi na UTI da Santa Casa me deu a certeza de que se você vai ao comércio mesmo sem precisar, não é porque se cansou da pandemia, é porque você é inconsequente e, do mesmo jeito, se não quer ser vacinado ou usar máscara e tenta convencer outras pessoas a isso, você não está “lutando pela sua liberdade”, mas sim tem problemas sérios de viver em comunidade.
O que vi na UTI da Santa Casa não é transcrito aqui em uma lição de moral cínica. É de realidade que escrevo e está mais do que na hora de levá-la a sério.
 

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