Paisagem sonora

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 30/04/2023
Horário 04:30

Um sentimento de vazio invade o meu peito. Uma mistura de profundo cansaço de um ano que exigiu de nós muito além da conta, mas também de recuo estratégico para mudanças que estão a caminho. É como no movimento da maré, que vai e volta, até atingir o nível mais baixo da praia. Momento mágico que o oceano dá um profundo suspiro e fica ali imóvel por frações de segundos. A vida submersa das profundezas aproveita a brecha do poderoso Netuno para “dar seus pulos”! É um siri que sai da toca. Algum molusco ou verme que se movimenta mais livremente no meio da lama descoberta e exposta ao sol. Os sons brotam. A paisagem fala, melhor dizendo, ela canta. É a paisagem sonora.
Eu não tenho dúvidas de que os sons reiterativos, repetitivos e circulares das ondas do mar pulsam dentro de nós. É uma espécie de melodia que gira em torno de uma tônica fixa. Uma nota que fica soando no grave, se repetindo sem se mover do lugar, enquanto sobre ela as outras realizam movimentos circulares. Mas no ponto mais extremo da maré baixa o mundo fica ainda mais sonoro. Levantam-se vozes ensurdecidas pela força do mar. A paisagem sonora vai se fragmentando em inúmeras situações desde o silêncio-ruído até modulações tonais com a ampliação das harmonias acórdicas das dominantes (nona, 11ª e 13ª maiores e menores), causando uma sensação de ambiguidade e fluidez, de ambientação harmônica vaga e muitas vezes inesperada. 
É o que José Wisnik (“O som e o sentido”, 2004) denomina de “malha de permeabilidades”, revelando que há um intenso intercâmbio sonoro entre as escalas modais - com suas superposições politonais quase ruídicas dos tambores dos morros, das ladainhas das procissões, dos repentes e dos congos - e a história que caminhou através da série harmônica. Esta paisagem sonora pode ser percebida como um documento vivo de que o vazio é de fato um fulgaz intervalo entre certos ritmos, tempos e contratempos que se resolvem nos encadeamentos de tensão e repouso da consciência crítica. 
Enfim, as paisagens sonoras são formas de ver os ambientes vividos. Também são formas de ouvir os ritmos e temporalidades que se combinam e interpenetram em nossas vidas. O corpo que habitamos é a medida de todo o conjunto destas relações criadas, delimitadas e sustentadas por nós mesmos. Agucemos nossos ouvidos! 
Subitamente, o mar retoma seu caminho na busca incessante do ponto mais elevado da praia. É o predomínio do pulso sobre o tom. É a vida que segue. 
 

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