Era uma vez um velhinho que chegou para mim e disse: “Eu sonhei, sonhei a noite inteira que estava consertando dois motores de caminhões. Estou até cansado de tanto bater a marreta. Não parei a noite inteira”. Esse senhor idoso tem 96 anos. Esse sonho dele intrigou-me. Fiquei muito pensativa e me pus a sonhar o sonho dele. Lembrei-me de Freud, que trás em seu repertorio teórico uma de suas maiores obras, centenária por sua vez, chamada “A interpretação dos sonhos”. Uma obra fantástica por sinal.
Todos nós psicanalistas nos beneficiamos muito com pacientes que sonham e que sonham seus sonhos. Os sonhos, ou elaborações oníricas, são ferramentas no arsenal teórico psicanalítico, que nos beneficiam para nos aproximar de sofrimentos psíquicos que muitas vezes os pacientes não traduzem, expressam ou revelam para si mesmo. O “estranho” acaba habitando regiões em nosso psiquismo que nos deixam cada vez mais distantes de nós mesmos.
Sigmund Freud escreveu que “O sonho é a via régia para o inconsciente”. Também escreveu que “O sonho é o guardião do sono”. Só podemos sonhar quando efetivamente dormimos. Algo durante o sono acontece. As barreiras de paredes grossas, construídas fruto da repressão e do recalque, acabam ficando muito finas durante o sono, permitindo que conteúdos não conhecidos, atravessem as pontes e permita que algo fique conhecido. Muitas vezes algo até mesmo nocivo que não tínhamos conhecimento. Podemos através dos sonhos oníricos nos conhecermos um pouco mais.
Mas vamos voltar no velhinho (idoso) que sonha. Vamos sonhar o sonho que ele teve a noite inteira. Freud disse que os sonhos infantis são restos diurnos, ou seja, ele é muito pequeno. A criança sonha do tamanho do seu desejo do dia e, no máximo, o dia anterior. Exemplificando: Se a criança tem desejos de comer morangos, mas de alguma forma não pôde realizar os seus desejos, ela sonhará a noite inteira que está devorando os morangos. Criança sonha pequeno. Adulto sonha grande. Há toda uma historia de vida por trás dessas imagens sonhadas pelo adulto. O sonho do adulto trás as imagens muitas vezes boas, lindas, ruins e muito estranhas. Nunca entendemos o que o sonho quer dizer. O sonho vem disfarçado do seu significado.
Antigamente falávamos nos oráculos, e nas esfinges que revelavam os sonhos. Hoje os psicanalistas, através do contato com o paciente e com sua historia, podem auxilia-lo a entender-se mais, através dos sonhos. O sonho é do sonhador. Fiquei comovida com o sonho do velhinho porque ele me disse, em entrelinhas, que está com medo da morte. Há naturalmente, em consequência de sua incapacidade física e motora, limitações em espaços onde ele não poderá transitar. Ele ainda tem um funcionamento mental satisfatório que o corpo físico não acompanha. Ele deseja, mas o corpo não acompanha. Através dos sonhos ele realiza o desejo de voar. Está fazendo o que a vida inteira fez, consertar os motores dos caminhões.
O seu sonho trás um sofrimento grande de perdas, de impotência, desamparo e impossibilidades inerentes à vida. O sonho é atemporal. Ele sonha sua juventude, potencia e liberdade. Ele desenha para mim, um pássaro. Os idosos estão sofrendo muito pela incapacitação natural gradativa. Muitos estão proibidos de dirigir automóveis, de sair sozinhos de casa, de dançar, de comer o que querem, de sonhar. Todos vamos envelhecer. Vamos cuidar melhor dos nossos idosos. Atenção, respeito, valorização e amor são fundamentais.
Maria Angélica Amorieli Bongiovani é psicóloga clínica, psicanalista e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Contato: angelicabongiovani@stetnet.com.br
