Saudades de médico...

OPINIÃO - Dênis Calazans Loma

Data 18/10/2020
Horário 06:00

“Saudade é a nossa alma dizendo para onde quer voltar”. Pensamento tão verdadeiro escrito por Rubem Alves. Minha alma quer voltar para tantos lugares, tantas companhias e tempos, que nem sei direito onde ela foi mais feliz.
Há quem diga que trafegar pela vida com pensamento no passado é uma nostálgica forma de viver. Concordo, mas é também uma maneira de buscar ensinamentos e inspiração para fazer um futuro mais acertado e melhor. 
18 de outubro foi a data escolhida para homenagear (celebrar, ou somente apontar) o Dia do Médico, em referência ao Dia de São Lucas, santo padroeiro da medicina. Apesar da data variar pelo mundo, é curioso imaginar que o ceticismo da ciência e da fé orbitam médicos e pacientes de igual forma: rogar a saúde e o afastamento da morte. Enquanto o homem temer a morte, será inevitável a valorização do parceiro mais qualificado para tentar postergá-la.
Nos últimos 50 anos, a medicina evoluiu mais que em toda história da humanidade. Os médicos passaram de meros espectadores da evolução natural das doenças irreversíveis, a corajosos agentes intervencionistas capazes de trocar órgãos quando já não sabem o que fazer com eles.
Fico imaginando o que diria Samuel Luke Fildes, que em 1891 eternizou em pintura a clássica imagem do médico pensativo e solidário à beira do leito de uma criança enferma; assistindo uma releitura moderna de seu famoso quadro. Algo talvez como um jovem médico, com um tablet nas mãos, checando exames via online a frente de uma apressada paciente, enfurecida pelo tempo que aguardou na sala de espera, e indignada por não ter optado por uma teleconsulta. 
A vida se transformou demais, e nesta revolução em curso, a medicina foi tomada de mudanças. Não digo desta bem vinda evolução científica e tecnológica, digo das relações humanas, da judicialização da vida. A meritória relação médico-paciente ainda sobrevive pelas mãos dos médicos vocacionados, infelizmente cada vez mais raros. Eu, como muitos, sinto saudades daquele médico antigo, respeitado e admirado por sua arte e a legião de pacientes que ajudou. 
Nestes tempos de wi-fi, Instagram e outras modernidades, quantas não são as situações em que muitos nem sabem o nome do médico que os tratou, mas todos querem sabê-lo imediatamente, se o paciente morre. Não se busca mais um médico por ser amado e respeitado, mas por constar na lista dos convênios. Lamento maior é assistir médicos que cursaram seis anos de faculdade, e outros tantos de residência para se tornarem blogueiros, oferecendo seu trabalho em mídias sociais, nos moldes de lojas populares, ou dancinhas no Tik-Tok.
Ser médico nunca foi tarefa fácil. Independentemente do tempo e das circunstâncias sociais, o ofício sempre exige do indivíduo um talhe diferente de qualquer outra profissão (sem menosprezar nenhuma outra). Quem se propôs exercer esta arte, de início carrega sobre si a crença de misticidade sacerdotal. Uma hipoteca de semideus. Só quem salva um ser humano, é outro ser humano e, portanto, se há algo de divino na medicina, estou convencido que é exclusivamente o amor. Amor à vida, amor ao próximo, amor à ciência, amor à arte médica, amor à ética, amor à natureza. A medicina é e sempre será sentimento e arte. Sentimento que nasce do indissociável compromisso de solidariedade com o homem; e arte que aflora da sensação de que o conhecimento científico não encerra em si toda a natureza deste ofício.
O Brasil é o país do mundo com maior número de faculdades de Medicina (342), e consequentemente forma o maior número de médicos por ano (35.388). Não precisamos de quantidade, mas sim qualidade. É preciso humanizar a formação médica, investir em educação e ciência, dignificar o trabalho de bons médicos, resgatar as relações de respeito, carinho... enfim, valorizar a vida!
Volto às palavras do sábio Rubem Alves, quando diz que: “Acho que os médicos, hoje, são infelizes por causa disto: eles resolveram ser médicos por desejar ser belos como o cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados como o feiticeiro. Era isso que estava dentro deles, ao tomarem a decisão de estudar Medicina. E é isso que continua a viver na sua alma, como saudade... É. A vida lhes pregou uma peça. E hoje a imagem que eles vêem, refletida no espelho, é a de uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços... Os médicos sofrem por saudade de uma imagem que não existe mais”.
Nós, médicos, fizemos a diferença quando tudo parecia perdido, com este vírus minando nossas vidas. Fomos aplaudidos em vários países em cenas comoventes. Quando todos estavam “quarentenados”, os médicos arriscando a própria vida para salvar a de outros. É este orgulho que me move, apesar de qualquer saudade: sou médico!  
 

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