Saudades do futuro

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 20/06/2021
Horário 05:00

“Saudades do futuro” é o nome do livro publicado em 1993 por Armando Corrêa da Silva. Ele foi meu orientador no doutorado e nos tornamos grandes amigos. Trata-se de uma coletânea de crônicas que Armando escreveu a partir de rascunhos de guardanapos de seus bares preferidos da noite paulistana. Entre uma taça e outra de vinho, Armando explicou que o curioso título do livro sintetizava o sentimento que tinha quando relia suas crônicas ali reunidas. Ele sentia saudades do futuro que se anunciava naqueles escritos, mas que de fato nunca ocorreu. 
Se esta era uma ideia considerada absurda por muitos daquela época, quantas situações tidas como certas nos foram roubadas em tempos recentes? Quantas saudades de viagens que eu poderia ter feito nos últimos dois anos! Que saudade da viagem que não fiz pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e pelas fronteiras do Maranhão e do Pará, refazendo os caminhos percorridos por Mário de Andrade e sua turma, lendo e relendo o seu magnífico projeto etnográfico reunido em “O turista aprendiz”, “Danças dramáticas do Brasil”, “Música de feitiçaria no Brasil”, “Melodias do boi e outras peças” e “Os cocos”! Quantas saudades dos encontros que não ocorreram com os descendentes de Chico Antônio e do que ainda restou do Engenho do Bom Jardim, no Rio Grande do Norte! E o que dizer das expressões artísticas observadas pela trupe modernista no final da década de 1920? 
Emboladas, cocos, catimbós, desafios, reisados, cantigas de roda, bois-bumbás, acalantos, entre outras formas de poesia, música, dança e cerimônias religiosas... Tenho certeza de que tais manifestações populares ainda estão lá. Elas resistem às transformações recentes da sociedade brasileira. Nem mesmo os livros dispensados pela atual gestão da Fundação Palmares serão destruídos, como o “Dicionário do Folclore Brasileiro”, obra clássica do historiador Câmara Cascudo que, segundo a comissão analisadora das obras a serem descartadas da biblioteca da fundação, é “um livro não só gramatical e ortograficamente desatualizado, mas com páginas soltas e exibindo um forte cheiro de mofo”!
Foi Câmara Cascudo quem recebeu Mário de Andrade na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Eles ficaram amigos e trocaram cartas acerca das tradições culturais nordestinas, muitas delas de origem africana. Maravilha! 
Armando Corrêa nos deixou muito antes do circo de horrores que se transformou o país. Ele pôde sentir saudades do futuro que imaginou para o Brasil. Nos resta a saudade de algum futuro... Não há país sem amar seus livros, escritores e poetas. 
 

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