Uma pequena (mas, necessária) aula sobre a imprensa

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 29/06/2021
Horário 07:42

Isso foi antes da pandemia, mas vale como nunca. 
Era uma sexta-feira, havia acabado de chegar a um churrasco e justifiquei o atraso: 
- Estava dando aula. 
Um cara de meia idade, sei lá, uns 50 anos, perguntou: 
- Você dá aula de quê? 
- Jornalismo
- Mas precisa de faculdade pra manipular as pessoas? 
Olha, se estivéssemos em uma floresta, o silêncio que se fez foi de ouvir uma gota de orvalho caindo no chão. Eu estava bem de boa aquele dia e tinha acabado de dar aula sobre os quatrocentos anos de presença da imprensa no mundo. Quatros séculos, não quatro anos. Veja só como já estava afiado. 
Abri uma long neck, sentei ao lado dele e o que se seguiu foi uma pequena aula gratuita, que reproduzo aqui. 
Prontos para anotar? Foi mais ou menos assim: 
“Amigo, eu não te culpo por pensar assim. Há muito tempo que a imprensa sofre com esta narrativa e até estou convencido de que muitos veículos atuam mesmo como instrumentos de poder e manipulação e dão margem para esta ideia. Em todos os governos, sempre tivemos exemplos notáveis de grupos de comunicação que foram cooptados e, por que não dizer, “comprados” pelos poderes políticos e às vezes até em parceria com grandes grupos econômicos. 
Mas é preciso ter certa boa vontade para compreender também que toda nossa sociedade é vulnerável a situações semelhantes. O senhor mesmo, que é médico, deve ter conhecimento de muitas posições ideológicas conflitantes na área e porque não dizer muitas vezes contrárias à ética profissional. Nem por isso nós chegamos ao hospital e já avisamos de antemão que os profissionais dali não são confiáveis. 
Assim também ocorre com a imprensa. Generalizar é um erro, mas para deixar mais claro, quero te colocar mais quatro fatores para levar a imprensa a sério, como se fosse uma aliada e não uma inimiga como você tem aprendido a fazer. Vamos lá?
1 - A imprensa sempre precisa incomodar o poder e se este poder insiste em narrativas pouco fundamentadas, e às vezes mentirosas, contra a própria imprensa, é sinal de que o caminho está certo. Ou seja, quando se ataca demais é porque há algo a ser escondido;
2 - Não, nunca haverá uma imprensa profissional completamente favorável a um governo e nem deve haver. Esqueça o sonho de uma imprensa que só dará notícias boas e irá sempre dizer amém para quem quer que seja. A imprensa profissional preza pela criticidade, cobrança e pluralidade de vozes e opiniões e vai sempre buscar o equilíbrio de versões diante dos fatos. Vai sempre também combater a desigualdade, injustiças e dar voz a quem não tem voz. Correndo na raia ao lado, o que podem existir são veículos engajados politicamente, militantes e não menos legítimos, mas que precisam ser observados com a crítica necessária;
3 - Você pode não acreditar em um ou outro veículo, mas isso não pode tirar o seu direito de receber uma informação de qualidade. Leia mais, assista mais, faça médias e conclua por si próprio se a notícia tem validade. Vou dar um exemplo: chegou informação de uma denúncia de superfaturamento. É verdade? Não sabemos exatamente, mas se a mesma denúncia for trabalhada em pelo menos três grandes veículos de grupos diferentes, algo realmente existe. Pare com esta bobagem de que toda a imprensa se juntou contra alguém. A imprensa é formada por grupos econômicos e que possuem também interesses e ideologias. Juntar todos num pacotão só é como acreditar que corintianos e palmeirenses se juntem para torcer um pelo time do outro;
4 - E por fim: não, o seu grupo de Zap-Zap não é um órgão de imprensa. No mínimo ele te manipula e no máximo ele te transforma em justamente em um garotinho de recado, que é aquilo que você mesmo classifica como podre em quem apoia a imprensa profissional. Pare de passar vergonha jogando fake news para frente ou dizendo que esse ou aquele veículo não mostra. Talvez não mostre o que você quer ouvir e tome cuidado porque redes informais como essas não são nem um pouco inocentes. Na segunda guerra, milhões de pessoas foram convencidas a apoiar Hitler no holocausto.”
Terminei e ele falou:
 - Aí fica difícil, né? Você mesmo disse que a imprensa não é 100% isenta e nem meu zap. O que eu faço?
 - Pense! Só isso! Pense!
 

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