Uma prudentina no coração da Ásia: Milena Mendes após 8 anos na Mongólia

Jornalista, ex-aluna da Unoeste, compartilha sua jornada de adaptação, desafios e descobertas em um país de clima extremo e rica cultura milenar

Foto: Sinomar Calmona
Milena Mendes: “A cultura culinária da Mongólia é uma alimentação de sobrevivência, porque eles vêm de uma vida nômade”
Milena Mendes: “A cultura culinária da Mongólia é uma alimentação de sobrevivência, porque eles vêm de uma vida nômade”

Distante 16 quilômetros de Presidente Prudente, a Mongólia se tornou, há oito anos, o lar da jornalista Milena Mendes . Em um encontro descontraído na Hachimitsu, ao lado de seu ex-colega de trabalho Sinomar Calmona e da sua ex-professora na Faculdade de Jornalismo (Unoeste [Universidade do Oeste Paulista]), Giselle Tomé, Milena abriu o coração para contar sobre sua vivência em um dos países mais frios do mundo, suas adaptações culturais e os laços que construiu na capital Ulan Bator. A conversa revelou uma Milena madura e resiliente, que, apesar de não chamar a Mongólia de “casa” ainda, se considera uma “hóspede muito bem-vinda” em terras mongóis. Os jornalistas Sinomar Calmona e Giselle Tomé, que acompanham a trajetória de Milena desde os tempos de faculdade, conduziram a entrevista com curiosidade e carinho.

Sinomar Calmona: Milena, conta aqui como foram esses oito anos de Mongólia.
A Ásia em si é um continente completamente diferente do que a gente tem aqui, desse lado ocidental. No começo foi bem difícil, a adaptação foi bem complicada, principalmente por conta do clima, que é absurdamente frio no inverno, oito meses do ano, com temperaturas que chegam a -30°C, -40°C. Para passar umas férias, você sofre muito, mas conforme você vai passando por todas as mudanças climáticas durante o ano, o corpo vai acostumando. Hoje eu já não tenho problema com o clima. Gosto? Não. Mas já me acostumei. A culinária é muito diferente, muitos costumes e tradições que a gente não tem aqui culturalmente no Brasil. Então, eu não consigo chamar a Mongólia ainda de casa, mas digamos que sou uma hóspede muito bem-vinda por lá.

Sinomar: O que te surpreendeu logo de cara na Mongólia?
Logo de cara, a similaridade com a Rússia. Porque foi uma colônia russa até o começo dos anos 1900. Então é um reflexo muito grande do que o socialismo era. Eu não esperava encontrar agora, nos anos 2000 e tantos, um reflexo tão socialista antigo, que eu lembrava de estudar na escola, na cidade onde hoje eu chamo de casa.

Sinomar Calmona: Como foi o processo de adaptação numa cultura tão diferente e os maiores desafios e alegrias desse período?
Desafios e alegrias, ok. Como eu disse, é um país de muitas culturas e tradições, assim como Japão, China, e que batem muito com o que a gente ou tem, ou nunca teve aqui desse lado do mundo. E para você se adaptar, leva um pouquinho de tempo. Por exemplo, uma coisa legal: quando sem querer a gente toca o pé de alguém, temos que fazer um leve cumprimento, tipo um pedido de desculpa, e segue a vida. Isso é fácil de adaptar. Porém, por exemplo, um dos maiores feriados deles lá é o Ano Novo Lunar, que geralmente acontece entre o final de janeiro e começo de março, dependendo do calendário lunar. Isso envolve muita comida, muita bebida, e para mim é difícil aceitar, mas como estou na casa deles, tenho que fazer parte desse feriado. É um feriado de três dias, onde cada dia você visita um número de famílias e tem que comer muito em todas as casas que você vai. É meio desrespeitoso se você não seguir essa tradição. Eu não comia carne, tive que me adaptar na Mongólia, de novo, por questão de respeito. Acho que o que foi mais difícil culturalmente foi adaptar à vida deles. Eu sou uma hóspede na casa deles, tenho que seguir as regras deles. Mas hoje em dia eles também já me conhecem, são oito anos e meio, né? Então, já conhecem meus costumes, minhas tradições. A gente se encontra no meio do caminho e se respeita, e está tudo bem.

Rede de apoio e a rotina de professora

Sinomar Calmona: E como é a sua rede de apoio e amizades na Mongólia? Você tem amigos mongóis, expatriados, uma mistura?
Essa é a parte que mais me pega. Rede de apoio, nem tanto, porque tenho um marido lá, a família dele é da Mongólia, porém, nós não conseguimos nos encontrar tanto porque os pais dele trabalham fora da cidade onde a gente vive. Então, quando eles vêm para a cidade, é mais um período de descanso. A gente não consegue contar com eles, por exemplo, quando tem uma emergência. Com relação aos amigos, eles são muito fechados. Para você conseguir uma amizade verdadeira mesmo, vai demorar muitos anos. Tenho um círculo de amigos de igreja, que é onde eu frequento toda semana, que é um pouquinho mais próximo, já está acostumando com a ideia de ter uma estrangeira no meio deles, e uma estrangeira que não está lá para tirar trabalho deles. É um tabu que estou querendo e conseguindo quebrar. Não é todo estrangeiro que vai para lá que é para tirar o que é deles. Então, eles estão me aceitando um pouquinho mais. A gente se encontra mensalmente, talvez. Mas assim, não tenho ainda um amigo que eu possa ligar às três da manhã se alguma coisa acontecer e falar: "Vem, me socorre". Isso ainda não tenho. Não sei quanto tempo mais vai demorar, mas de novo, já entendi que é a cultura deles e eu que me adapte.

Sinomar Calmona: Como é sua rotina, um dia típico na Mongólia? 
Bom, eu sou professora de inglês na Canadian School of Ulan Bator, que é a capital do país, e eu vivo do outro lado da rua da escola. Então, acordo geralmente umas seis e meia, tomo meu banho, me preparo para ir para o trabalho, arrumo minha filha que vai para a escolinha. Eu entro na escola às oito da manhã e fico lá até pelo menos cinco e meia da tarde. Os horários são bem diferentes do que a gente está acostumado no Brasil. As crianças ficam na escola das oito e vinte até três e quarenta, geralmente, quando não têm atividades extras depois. Então, minha rotina é praticamente o dia inteiro lá. À noite, eu tenho que praticar uma atividade física ou então faço outros trabalhos com outras grandes empresas que têm lá na Mongólia, em parceria também de inglês. Mas é sempre assim, minha rotina circula em torno de inglês, aulas de inglês, encontros de inglês e cuidar da minha neném, que já está com três anos.

Saudade do Brasil e culinário de sobrevivência

Sinomar Calmona: Qual a primeira coisa que você faz quando você chega aqui em Presidente Prudente? E qual que você sente mais falta?
Eu vejo qual comida eu vou querer comer! Por incrível que pareça, sinto muita falta de salgadinho de festa. Uma coxinha de frango e uma bolinha de queijo. Isso não existe em outro lugar do mundo. Inclusive, pedi para a gente fazer uma minifestinha para minha filha, pedi, e foi isso que comi, acho que no aeroporto mesmo, logo que tinha chegado, falei: "minha coxinha, a coxinha tem que ir".

Sinomar Calmona: Fala mais da alimentação local. Quais os pratos que você teve mais dificuldade de adaptar? Como foi?
A cultura culinária da Mongólia, diferentemente da italiana ou da francesa, que é um glamour, uma gourmetização, lá é uma alimentação de sobrevivência. Primeiro, porque eles vêm de uma vida nômade. Então, os nômades só usavam o que os animais providenciavam ou a natureza. Tem muitos cavalos, muitas vacas, muitos camelos, muitas cabras. O que os animais dão para eles, eles comem. Então, muita carne, muito leite, muitos derivados do leite. Não cresce muitos vegetais, legumes assim, porque é muito frio. A maioria dos vegetais, legumes e frutas são importados, o que torna muito caro. Então, você encontra uma culinária baseada em batata, cenoura, muita carne e alguns noodles, como um macarrãozinho feito de farinha apenas. Isso você encontra praticamente na mesa de todos os mongóis tradicionais.

Claro que aqueles que têm um pouquinho mais de condições têm já o seu arroz, umas misturas, mas sempre à base de carne, e que para mim foi muito difícil no começo, como eu disse, porque eu não comia carne. Então, tive que me adaptar, mas é muito legal porque eu consigo ver a diferença de quando eu cheguei lá para hoje, como aumentou o número de estabelecimentos que oferecem comidas vegetarianas, por exemplo. Não existia muito no começo, era só uma rede básica que tinha alguns pontos, mas fora isso os restaurantes não tinham isso. Mas com o fluxo muito grande de estrangeiros, principalmente durante o verão, turistas, eles entenderam que tinham que abrir um pouquinho a culinária para o mundo, e graças a Deus eu consegui me virar um pouco melhor.

Por que a Mongólia? Um chamado inesperado

Giselle Tomé: Eu sei, mas eu acho que muita gente que está assistindo talvez não saiba. Por que a Mongólia?
Ah... Isso dá um podcast em si! Em 2016 eu finalmente estava me formando na faculdade, depois de um período que eu tinha tirado de break para poder viver fora pela primeira vez. Finalmente eu voltei, estava terminando em 2016, eu fui trabalhar nas Olimpíadas e lá recebi o chamado da SporTV para trabalhar. Era o que eu queria, queria ir para as Olimpíadas já, para voltar da faculdade com alguma coisa encaminhada. Só que dois meses antes de eu ir para as Olimpíadas, uma família da Mongólia, brasileiros, entrou em contato com o pessoal aqui no Brasil que chegou até mim falando: "Viu, a gente quer professor de inglês para nossa escola, você topa?". E era um sistema voluntário missionário. Eu fiquei muito curiosa com isso. Falei: "Não, estou indo para as Olimpíadas, não quero saber de fechar nada por enquanto". E outra, eles precisavam de mim lá em setembro, que é quando começa o ano letivo na Mongólia, e eu só me formava em dezembro. Parecia que nada ia dar certo, né?

Mas aí, quando eu fui para as Olimpíadas, eu tive um encontro com um grupinho assim, que eu só vi de longe quando vi "Mongólia" nas costas deles, porque assim, o coração acelerou, bateu muito forte, foi uma mensagem — ó, arrepiado! — muito clara de que era para eu ir, para pelo menos ver no que podia dar para depois voltar. E eu sempre fui muito disso, né? Eu preciso pelo menos ir e quebrar a cara, do que nunca ir e falar: "Ai, se tivesse ido. Ai, se tivesse acontecido". Então, me formei em dezembro de 2016. Três semanas depois, já janeiro de 2017, eu estava na Mongólia para o que seria um período inicial de dois anos e já são oito e meio.

Costumes adotados e relacionamento com nativos

Sinomar Calmona: Existe algum costume ou tradição mongol que você adotou em sua vida?
Que eu adotei em minha vida? Ah, a tradição de, por exemplo, tirar o sapato na entrada de casa. Não é simplesmente uma questão de limpeza, é uma questão de respeito por quem vive naquela casa. Então, é uma coisa que eu adotei. O que eu falei de sem querer, assim, ah, pisei no seu pé? Ah, desculpa, bati o pé no seu pé? Não é tipo assim uma desculpa. Tem aquela coisa de: te vejo, te toquei, me perdoa. É um "dá a mãozinha", fazer pronto, acabou. Não é nem um "tá! Como está? Tudo bem?". Não, é só um toquezinho ali.

Mas a maioria dos costumes e tradições deles tem base no budismo, que é uma das principais religiões do país. Como eu não sou budista, eu sou cristã, tem muita coisa que, acho que a maior parte dos costumes eu não faço parte. Um que eles queriam que eu fizesse parte é aos dois anos, as meninas têm que raspar a cabeça. Aos dois e aos quatro anos, as meninas têm que raspar a cabeça, porque de novo é uma questão de proteção contra os espíritos maus e tudo mais. Isso é, de novo, enraizado no budismo, mas é tão forte que já se tornou uma cultura mongol. Eu não fiz, de novo, porque eu não quero dar suporte ao real motivo disso, mas são coisas que no dia a dia a gente acaba meio que adaptando, porque os amigos fazem, a família faz, enfim, mas de adaptar, não muito.

Sinomar Calmona: Fale mais sobre o relacionamento com os nativos mongóis. Eles são receptivos a estrangeiros?
Os mongóis mais simples, que não estão no mercado de trabalho assim internacional, por exemplo, são extremamente calorosos, muito receptivos, querem que você vá até a casa deles quando você os conhece, te recebem com bastante comida, bastante... é como se você fosse realmente um forasteiro entrando na casa deles. Eles são bem receptivos. Agora os mongóis que já têm um pouquinho mais de educação, talvez, ou mais experiência internacional, eles ficam bem receosos com a questão do estrangeiro, porque eles acham que a gente está indo lá para tirar o trabalho deles. E não é bem assim, claro que tem opções — aliás, tem coisa que só um mongol pode fazer e tem coisa que só estrangeiro pode fazer, e a gente está indo lá para agregar, para expandir o que eles já têm. Então, tem gente que ainda tem um pouquinho de xenofobia, ainda tem, principalmente com, por exemplo, chineses. Mongol e China não se dão. Mas no geral, acho que eles são calorosos e receptivos o suficiente para aprenderem também a delimitar o espaço deles.

Sinomar Calmona: Seria rivalidade tipo Brasil e Argentina?
Pior ainda! Porque para a gente é só no esporte, no futebol especificamente, para eles é na vida, na vida.

Um encontro de milhões e a despedida

Giselle Tomé: Ah, eu estou muito feliz aqui de estar encontrando a Milena, né, sabendo um pouquinho mais de como está seu trabalho, de como que está lá e de você estar bem, e ser muito feliz. Foi um encontro inesperado nessa manhã, né?

Sinomar Calmona: É, e eu feliz aqui de encontrar duas queridas. Gisele, minha ex-colega de trabalho. Milena, essa menina que eu conheço desde criança.

Giselle Tomé: Pois é. E a gente trocou bastante bastante. Felicidades, viu!
Obrigada, você. Obrigada pelo bate-papo, pelo café. Um prazer, um prazer. Sempre que eu voltar para Prudente, pode ter certeza que a gente vai ter esse nosso encontrinho.

Giselle Tomé: Eu que agradeço. Nossa, encontro de milhões, né?
É! Foi, foi legal. E como a gente fala na Mongólia, Bayertai! Que significa tchau, tchau.

Sinomar Calmona


Milena Mendes entre seus entrevistadores, Sinomar e Giselle Tomé

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