“A igreja do Diabo”, de Machado de Assis

Em 1883, Machado de Assis (1839-1908) escreveu o seu polêmico conto “A igreja do Diabo”. Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Ele sacudiu a cabeça, num gesto magnífico e varonil e foi comunicar-lhe a ideia e desafiá-lo. Batendo as asas, com estrondos, abalando todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul (céu). Deus recolhia um ancião, quando o diabo chegou. Que me queres tu? Deus perguntou. Ele respondeu: Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto demais. Vou edificar uma hospedaria barata; vou fundar uma igreja, vim lhe dizer-vos, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação. Boa ideia, não vos parece? Deus disse: Vieste dizê-la, não legitimá-la.
Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Lançarei a minha pedra fundamental. Então vai, disse Deus, mas antes digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
Ele respondeu: É que só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda. Retórico e sutil, exclamou o Senhor! Vai, vai funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai vai! O diabo dobrou as asas e como um raio, caiu por terra, para não perder um minuto...
Bem, o Diabo fundou sua igreja. Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico, muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. 
A descoberta assombrou o Diabo. Ele mal pode crer tamanha aleivosia. Voou de novo para o céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus o ouviu com infinita complacência, não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. Fim da igreja do Diabo. 
 

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