Roberto Mancuzo Buarque de Hollanda

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 25/04/2023
Horário 06:00

Desde pequeno, quando passava pelo quarto dos meus pais eu lembro de ver uma fotografia do lado de dentro da porta do armário que guardava as roupas de minha mãe.
Era uma página de revista, na verdade, com o retrato enorme de um homem muito bonito, cabelos quase grisalhos, meio encaracolados, e olhos “oceanamente” azuis. 
No começo até fiquei encanado. Como minha mãe tinha a foto de alguém no guarda-roupa que não fosse do meu pai? Mas logo descobri que não era uma pessoa qualquer. 
Era o Chico Buarque e bem, trocando em miúdos, está perdoada, claro. 
Trago para a crônica de hoje o homem que canta coisas de amor porque quatro anos depois de ter sido anunciado vencedor da maior honraria da Língua Portuguesa, Chico só recebeu o “prêmio Camões” nesta segunda (24), das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 
Não vou entrar em questão do presidente antecessor em se recusar a entregar o prêmio. Isso fica para o julgamento da história. Chico deve ter hoje razão em cantar “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Mas quero falar sobre como tenho a sorte em ter o cancioneiro deste brasileiro tão presente em minha referência cultural.
Quantos textos já escrevi e quantas falas em sala de aula já fiz tendo como base as histórias de amor, perdão, traição, vida, morte, tragédia, suspense, o cotidiano puro e simples do brasileiro mais simples ainda. Assim como eu, imagino quantos viveram fragmentos de vidas com suas letras ancoradas. Quantos discos do Pixinguinha que entraram em litígio e quantos livros do Neruda não foram devolvidos? Quantos já perderam a noção da hora e quantos confundiram as pernas em travessuras de noites eternas? 
Como foi bom ter sempre a voz suave ecoando pela casa quando era criança. Os sábados pela manhã eram legais porque quando ouvia o Chico na vitrola já sabia que seria dia de receber amigos. A mãe cozinhando, o pai comprando o que faltava, o Saint Remy pronto para receber o povo. 
Não quero entrar no mérito de quem hoje tem como referência músicas, músicos e compositores de qualidade bem duvidosa, forjados pela indústria cultural para vender o que for. Nós também tínhamos esta tranqueirada nos anos de 1980 e 1990. Aliás, a TV era bem mais trash do que agora, mas de alguma forma ter pais que soubessem dosar o que chegava aos nossos ouvidos e nos entregar, mesmo que pelas tabelas, gente como Chico, Milton, Caetano e Gil, fez muita diferença. 
Não me julgo capaz de interpretar corretamente qualquer canção de Chico. Não tenho competência diante de tanta genialidade e certamente errarei feio, mas sei que em parte sou fruto da influência da arte deste homem e por isso ouso, mesmo que de brincadeira, em acrescentar ao meu nome um sobrenome tão substancial.

“Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização”
(Futuros Amantes – Chico Buarque)
 

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