A noite dos insubmissos

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 30/11/2025
Horário 04:03

Há noites em que a música — como quem sente saudade — se aglomera na sala. Ligo o som e, sem querer, deixo a trilha me levar por três caminhos distintos. Primeiro, a voz de Jards Macalé — áspera, cortante, quase declamada — recitando “Mal o bastante”. Depois, a nostalgia de “Vapor barato” paira no ambiente: saudade, melancolia, ironia tropical. Logo em seguida, a voz de Jimmy Cliff, abrindo “Many Rivers to Cross”, doce e pesarosa. Sinto o peso das jornadas, das partidas, dos rios invisíveis que cada ser carrega. E a certeza de “You Can Get It If You Really Want” — uma faísca de esperança, um sopro de persistência. É como se Cliff dissesse: “Você vai passar. Você vai atravessar”. Hermeto Pascoal, sem pedir licença, transforma o ambiente. Surge “Música das Nuvens e do Chão”, depois o canto ancestral de “Canto das Três Raças”: passado e futuro reconciliando-se num sopro só. O universo inteiro vira instrumento. O ar treme com sopros, com panelas, com notas que vêm da terra, da casa, do vento. A música dança, o corpo escuta.
“Um trio improvável?”, diria qualquer ouvinte apressado. Mas quem escuta com calma percebe que eles formam uma espécie de confraria subterrânea, como aquelas rodas de conversa que começam tímidas e terminam iluminando a madrugada. Cada acorde, cada sombra, cada silêncio, é uma pergunta: o mundo será sempre esse que dizem? Ou podemos, juntos, desobedecer e compor outro? E ali — naquela noite, com os três insubmissos— percebo uma estranha comunhão. Macalé acendia o fogo com palavras ferinas; Cliff com fé, voz e luta; Hermeto com som, mundo e alquimia. Parecia que eles queriam me lembrar que o mundo só é bonito porque é imperfeito. E cada um à sua maneira acende o mundo. Macalé acende pelo atrito: a faísca que rasga o silêncio. Jimmy Cliff acende pela fé: a chama que insiste mesmo sob a chuva. Hermeto acende pelo espanto: o clarão que transforma tudo em possibilidade.  
Pois é, o anjo torto da MPB, a lenda do Reggae e o bruxo da música brasileira viraram estrelas e, juntos, formaram uma linda constelação no firmamento. Uma roda de mestres me lembrando que viver também é improvisar, suportar, desobedecer — e, sobretudo, continuar acendendo o mundo um pouco por vez. A música, quando verdadeira, não precisa se parecer com nada, nem seguir escola, nem agradar audiência. Basta que tenha coragem — o tipo de coragem que já salvou muita gente de atravessar a noite no escuro.

 

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