Digam ao mundo que morri. Sim, isso mesmo, estou morto e me encontro, nesse momento, do outro lado, aquele, desconhecido da maioria, vivido por ninguém e a ser experimentado, algum dia, por todos. Que essa os encontre bem, que assim o seja. Em vida, teria muito a dizer, em morte, ainda um pouco mais. Apreciador de Brás Cubas, encontrei em sua passagem inspiração para ser, como ele, defunto autor. Pasmem, mesmo morto, eu seria capaz de muitas realizações, como as que agora relato, ainda que brevemente, no além vida.
É realmente uma coisa engraçada essa de estar vivo, todos os dias, com afazeres. Agora que já me vejo assim, na condição de moribundo, tenho tido outras ocupações, mais aprazíveis, vocês concordariam, se aqui estivessem. Andei pensando se não seria agradável se tivéssemos todos a oportunidade de ver a vida desse modo, isto é, a partir do ponto de vista do morto, mesmo que a morte seja a do outro. Assaz compreenderiam que certas coisas tem mais valor do que outras, ou mesmo, que nenhum de nossos valores talvez faça sentido, como queria Nietzsche.
Certa vez, imbuído de falsas expectativas e poucas realizações, vivendo em grandes cidades, com notas e condecorações, com ares de importância que conferiam a todos e menos a mim, pude perceber, finalmente, que procurava a mim mesmo em lugares que não eram os meus. Vivia, por assim dizer, apenas por viver. Olhando as coisas daqui, desse lado, senti finalmente que o tortuoso caminho não me levaria a lugar nenhum, que a felicidade era para os tolos e a glória para os insensatos. Quanto tempo perdido querendo ser alguém, quando, em realidade, não somos ninguém.
Pois bem, e agora, o que podemos fazer? Ao pensamento cabem coisas grandiosas, todas, é bom dizer. Com ele e nele, sendo, somos o que realmente queremos. Não é fácil a compreensão de semelhante disparate, mas o fato é que estamos iludidos, desde há muito. Daqui, posso ver melhor e posso dizer, a vocês, o que nunca poderão enxergar. Os sentimentos continuam iguais, vivos, mas já não sinto aquilo que antes, em vida, sentia. É mesmo uma coisa impressionante. Perguntei aos próximos o quão ilusórias podem ser as sensações em vida, e mesmo eles, mais sábios, não puderam responder. Talvez seja essa a única resposta.
Bem, aqui os dias não passam, pois não existem. Apenas existimos. Com sentimentos variados, pensamentos distantes, estudos correlacionados. Aquele desprazer passou, e digo mais, passará pra vocês também. Ainda me impressiona a insensibilidade dos vivos, presos a suas ilusões comezinhas, achando isso ou aquilo, vangloriando-se de si mesmos e de suas parcas existências. Eu que, em vida, fui a todos os lugares, experimentei todas as coisas, em muitas ocasiões diferentes, nessas e em outras oportunidades, posso dizer com certa propriedade que viver não é preciso.
Bem, prometi e mais uma vez não cumpri. São muitas as novidades que agora tenho tido a oportunidade de suportar que os assuntos me escapam, confesso. A natureza de minha profissão em vida, como o sabem, homem iletrado, continua sendo um impedimento. Mas a ideia fixa, essa sim, não sairá de mim, mesmo que seja ela a causa de minha passagem para cá, o outro lado da vida.