Em 2007, num livro excelente dedicado aos últimos anos da vida de Freud, Mark Edmundson, um professor universitário americano, retomou a ideia cara aos historiadores - e também a Thomas Mann - ao estabelecer um paralelo entre duas vidas vienenses da Belle Époque: aquela, infame, do jovem Adolf Hitler, com 20 anos em 1909, e a outra, radiosa, de um Sigmund Freud em plena ascensão rumo à glória. O primeiro se tornaria o maior assassino de todos os tempos, destruidor da Alemanha, genocida dos judeus e da humanidade em sua essência, e o segundo, o pensador mais renomado e controvertido do século XX.
Nascido num meio de camponeses desqualificados, maltratado por um pai estúpido e violento que se casara com a sua jovem e desafortunada prima, o jovem Hitler odiava o mundo inteiro e mais ainda a Áustria, a qual ele sonhava condenada um dia a ser dominada pela Alemanha Guilhermina. Em Linz, onde fazia estudos marcados pelo fracasso constante, num estabelecimento por sinal frequentado por um judeu que se tornaria um filósofo célebre, Ludwig Wittgenstein, a quem ele já odiava, deixara-se seduzir muito cedo pelos símbolos e sortilégios do nacionalismo pangermânico, do qual fará mais tarde a ponta de lança de seu combate contra os judeus. Assim, opunha-se ao nacionalismo de seu pai, muito ligado à grandeza do império dos Habsburgo.
Após a morte dos pais, Hitler foi para Viena na esperança de fazer fortuna como pintor e arquiteto, mas, por duas vezes, foi rejeitado pela Academia de Belas-Artes, o que intensificou seu ódio ao mundo da cultura, das artes e do espírito. Indolente, destituído de talento, preferindo entregar-se mais aos afetos (ódio) que ao pensamento, adorava animais para melhor odiar os humanos... Em março de 1933, assim como muitos outros austríacos, Freud não percebia o perigo que o nazismo representava para seu país. Julgava-se protegido pelas leis da República e, apesar dos conselhos dos amigos estrangeiros, recusava terminantemente a deixar Viena: “Não é certo que o regime hitlerista vá apoderar-se da Áustria também. É possível, naturalmente, mas todo mundo pensa que aqui isso não atingirá o mesmo nível de brutalidade que na Alemanha. Não há certamente nenhum perigo pessoal para mim e, se supõe que a vida sob opressão será suficientemente desconfortável para nós, judeus, não se esqueça esse respeito, da precariedade que a vida no estrangeiro, seja na Suíça, seja na Inglaterra, reserva aos refugiados. Penso que a fuga só se justifica por um perigo vital direto e, afinal de contas, se este se concretizar, é uma maneira de morrer como outra qualquer”.
Negando-se a ver que o nazismo ia espalhar-se por toda a Europa, não confundia comunismo e nazismo, tratava a barbárie hitlerista como uma regressão brutal aos instintos mais assassinos da humanidade. Freud teimava em recusar qualquer perspectiva de emigração para o continente americano. A seu ver, a luta a favor da preservação e salvamento da psicanálise deveria ser travada na Europa. Em 11 de maio de 1933, encenado, durante uma noite inteira na Opernplatz, o espetáculo reuniu professores, estudantes, seções de SS e AS. Todos desfilaram alegremente, brandindo archote, cantando hinos patrióticos e entoando sortilégios: “Contra a luta de classes e o materialismo, entre as chamas os livros de Marx e Kautsky, contra a exaltação dos instintos e a favor do enobrecimento da alma humana, entrego às chamas os escritos de Sigmund Freud”.
De Viena, Freud retorquiu: “Quanto progresso! Na Idade Média, teriam me queimado; agora limitam-se a queimar meus livros”... Como poderia imaginar, naquela data, que o que ele escrevera em 1930 sobre a capacidade do homem de se autodestruir pudesse se realizar com tamanha rapidez? Uma das últimas frases de Freud: “Os homens alcançaram tamanho grau de controle das forças da natureza que, com sua ajuda, não lhes é difícil exterminarem-se mutuamente até o último homem... Convém agora esperar que a outra das ‘duas potencias celestes’, o eterno Eros (amor), faça um esforço para prevalecer no combate com seu não menos imortal adversário”. Compartilhando um fragmento de capítulo do livro de Elisabeth Roudinesco, “Sigmund Freud na sua época e em seu tempo, editora Zahar”.