Lembro perfeitamente aquele dia em que tomava café, no alpendre, vejo a chuva que vinha de longe e insistia em não se aproximar. O cheiro da terra seca, o calor de sempre, o abafamento, a caneca vermelha, de ferro laqueado. O café era bom, forte e doce, adoçado com rapadura, de cana, da terra mesmo. Estava ansioso, como todos, acho que era criança ainda, a gente tomava café desde cedo, com 3 ou 4 anos. Não choveu aquele dia, eu acho, não lembro direito.
A menina saiu e nem vi, deve ter ido trabalhar. Já trabalhei demais, não gostava não, era pesado e não gostava da enxada, da terra dura. Quando cheguei aqui era outra coisa, muita rua de terra, uma poeira vermelha que só vendo, gostei, gostamos, fomos ficando. Faz tempo já, gostei muito, as bicicletas, o dia a dia da escola, cidade no começo, fácil não era. Hoje é mais fácil, eu lembro bem, choveu e fez um frio danado, foi novidade.
Outro dia lembrei do meu cavalo preto, só tive aquele, a gente se gostava, eu mais do que ele. Vendemos, fiquei sem. A cidade é uma coisa engraçada, ninguém se respeita e nem se conhece, parece todo mudo importante. Ouvi no rádio que ia ter jogo, fui ver, lá no campinho da sorocabana. Foi bom, teve jogador famoso, daquela época, foi uma coisa bonita de ver. Amanhã a gente vai no médico, visita agendada, não gosto. Tomava uns chás e ficava bom, agora não, dão remédio pra tudo.
A Lurdes era uma beleza que só vendo, paixão bruta, de primeira. Gostei demais dela, dos filhos, da nossa vida ali na casinha. Quando ela morreu eu só ficava ali vendo ela deitada, mãos no peito, chorando de saudade. Os meninos me abraçaram, falaram pai, a vida é a assim mesmo, vamos levantar a cabeça e seguir em frente. Pode ser, mas pra mim não é assim, ainda gosto dela. Uma vez ela me deu uma camisa nova, bonita, azulzinha, usei ela naquela entrevista de emprego, carteira assinada, novidade pra mim.
Tinha gente entrando e saindo o tempo todo, era bom, me distraia. À noite, quando ia, não gostava, não tinha ninguém. Depois mudei, consegui coisa melhor, mesmo trabalho, mas era melhor, foi 30 anos ali. Lembro do dia que ganhei aqueles bombons, levei pra Lurdes, que comeu todos e achei maravilhoso. Me pediu pra comprar, não sabia de onde vinha, uma tal de Bélgica, sei lá, não lembro. Outro dia vi um daqueles, lembrei da Lurdes. Sempre lembro dela, acho que todo dia, a paixão era demais.
Lembro dos sermões do padre Antônio, dava medo, aquela coisa de inferno, pecado, essas coisas. Depois que li a Bíblia não entendi porque o padre Antônio assustava a gente com aquela conversa. Roubamos as moedas do santo pra comprar rapadura, foi divertido, a Lurdes era pequena ainda, comeu também. Desde aquela época eu gostava dela, depois amei e casamos. Ontem senti o cheiro dela aqui, logo cedo, com o vapor do café.
Gostava de ficar na cozinha com ela, bem cedo, coando café, escolhendo o feijão, falando das crianças. Comprei um cavalinho de madeira pro menino uma vez, com aquele dinheiro que recebi da firma. A menina viu e gostou, tive que dar outro pra ela. O dinheiro se foi, mas gastei bem, lembro da alegria deles, montando os cavalinhos no quintal de terra.