O rei do slam

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 06/07/2025
Horário 05:03

Ele sentava sempre no fundo. Era daqueles alunos que pareciam fazer questão de não chamar atenção. Nunca interrompia, nunca discordava, nunca levantava a mão. Seu nome estava nas chamadas, nos boletins, nas listas. Mas, no dia a dia, quase não estava.“Ele não participa”, diziam os professores. “É muito quieto.” “Precisa se soltar mais”, anotavam nas reuniões pedagógicas, como se o silêncio fosse um defeito a corrigir.
E ele lá, desenhando espirais no canto do caderno, olhando para a janela. Aquele menino calado escutava o mundo como quem cala o corpo inteiro porque sente tudo de uma vez. Sua escuta não era distração. Era sobrevivência. Presença inteira, só que quieta.
Até que, numa sexta-feira abafada, a escola promoveu um sarau. O professor, entusiasmado, chamou de “slam poético”, o que provocou alguns bocejos e olhares desconfiados. Mas teve quem se animasse — e foi assim que, no improviso, montaram um palco com duas caixas de som e um microfone que chiava.
Quando anunciaram a inscrição surpresa dele, ninguém entendeu. "Quem? O da última fileira?” Sim. O mesmo. Ele subiu devagar. Pegou o microfone como quem pega um instrumento de precisão. E então, como quem abre uma comporta da represa por dentro, falou.     A palavra veio com o peso dos dias em que ele calou. Veio com a densidade das coisas que se pensam por dentro, na margem. Falou de desigualdade, de escuta, de cansaço, de ser olhado sem ser visto. Cada verso era uma flecha. Cada pausa, um grito: 

“Não tô mudo.
Tô inteiro.
E inteiro não precisa gritar.

Palavra, quando nasce antes do tempo, vira pedra.
E quando ela cair, meu irmão,
vai abrir clareira.

Então me respeita.
Meu silêncio tem história.
Meu silêncio não é ausência. É espera.”

A plateia silenciou como nunca. Quando ele terminou, ninguém aplaudiu de imediato. Era como se todos tivessem esquecido como se reage. Então alguém gritou: “É o rei do slam!” — e os aplausos vieram, largos, sinceros, com gosto de descoberta. Na semana seguinte, o professor colocou uma frase dele no quadro: “Meu silêncio não era ausência. Era espera.” E ninguém nunca mais disse que ele era “desligado”. Cada gesto era fala aberta. Resistir é dançar na beira do abismo sem perder a raiz. “Tamo junto até o próximo grito”!

Raul Borges Guimarães é professor titular do Departamento de Geografia da FCT/Unesp (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista) e pró-reitor de Extensão Universitária e Cultura da mesma instituição. Contato: [email protected] e Instagram @fala_raul


 

Publicidade

Veja também