Tradição de casamento

António Montenegro Fiúza

Do período de tempo que ali vivi, retenho na memória o espírito do seu povo e a substância da sua cultura.
De cestas à cabeça, carregadas de iguarias: carnes, banana verde, fruta–pão, mandioca, abóbora e vários outros, vêm chegando aos magotes, cantando alegremente pelas ruas e dirigindo-se à futura casa dos noivos.
De longe, caminhando pelas ribeiras e pelas achadas, pelos vales cheios de calhaus e milharais, apresentam-se os convidados, entre familiares e amigos; aperaltados, acenando bandeiras enormes e coloridas, acompanhados pelo rufar dos tambores que dá o ritmo à caminhada, chegam de todos os lados da ilha de Santo Antão em Cabo Verde, para participar das festas.
Vão cantando versos de improviso ou pta saúde [1], remetendo à vida conjugal plena de alegrias e bonança, às qualidades do noivo e às virtudes da noiva, ao respeito e cuidados mútuos.
Com pelo menos um ano de antecedência, o noivo pede a mão da pretendida em casamento, que é marcado entre os meses de maio e julho, evitando a Quaresma [2] (que exigia o jejum) e a época da sementeira e dazaguas [3], que ocorre entre agosto e novembro.
Desde esse dia, até a data em que o enlace ocorre, a noiva está proibida de usar qualquer peça de roupa de cor preta – que simbolizaria luto ou tristeza – mesmo que um familiar próximo viesse a falecer, afinal ela estava prestes a unir-se em sagrado matrimônio e seria feliz pelo resto da sua vida.
Cedo se anuncia o aproximar da grande data: cada membro da família, convidados e membros ilustres da coletividade hasteiam, ao cimo das suas casas, uma bandeira branca anunciando que o bairro está em festa.
Celebração rija, durando sete dias, com fartura de víveres e de bebidas, dança-se quase ininterruptamente, ao som do acordeão, do violino, da rabeca e do cavaquinho; pessoas entram e saem, os convidados dormem em casa dos familiares, dos vizinhos, onde for possível… mas pouco se chega a repousar, há pratos a arranjar e todos participam dos preparativos.
Passam os dias e passam as noites, chegam as senhoras mais idosas – mulheres casadas e respeitadas, as quais vão dando a sua bênção e conselhos, à noiva, preparando-a para os dias e anos que se seguirão. Em alguns lugares, ainda se exige que a nubente chore, ao longo de todo o dia do seu casamento, para secar as lágrimas todas e não ter nenhuma a derramar, daí em diante. Ao noivo são dados presentes: vacas, porcos e cabritos, tabaco e pito [4], aguardente velha e de boa qualidade, ele agora é o chefe da família e deve prover pelas suas necessidades.
Tradição antiga, de Cabo Verde… tradição de gente grande.
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[1] Botar ou lançar saúde
[2] Trata-se de uma população majoritariamente católica, que até aos dias de hoje, vive solenemente cada festividade
[3] “as águas” ou época das chuvas
[4] Cachimbo, normalmente utilizado pelos homens mais velhos, como sinal de honradez e sabedoria

 

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