Vidas negras importam!

OPINIÃO - Saulo Marcos de Almeida

Data 06/09/2022
Horário 05:00

Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo
Wittgenstein

Acredito que a linguagem precede a ação humana. Acrescento ainda: a linguagem é a estruturação de nosso mundo, a forma como apreendemos nossa realidade e a maneira como agimos sobre ela. Somos artífices e produtos inacabados da linguagem humana. Nós (homens/mulheres) a criamos, mas também somos feitos à sua imagem e semelhança. A linguagem é a expressão maior do que somos e acreditamos. Assim, ela torna-se a interpretação que o homem faz do seu mundo. A linguagem da comunidade representa, em última instância, a existência presente e vivida. 
Na semana passada, um candidato a governador de um importante Estado do país, em entrevista à determinada emissora de TV, reagiu à pergunta de uma jornalista: “Quase uma negra na pele, mas é inteligente”. Diante da repercussão negativa dada à resposta, o político imediatamente se desculpou, informando ter aprendido com a experiência. 
Antes de quaisquer considerações que apelem para a simplificação do politicamente correto levando a crer que o político em questão não teve a intenção de “quase” ofender a jornalista no exercício efetivo de seu trabalho, infelizmente, uma vez mais/novamente se testemunhou de forma inequívoca o preconceito que tentou se esconder numa simples conjunção, capaz de expressar, sobretudo, uma linguagem que a população precisa mandar embora. 
Permita-me dizer que, no caso em questão e tantos outros no Brasil, é preciso que a sociedade saiba que não existe jornalista negra. Explico: no exercício de seu trabalho como profissional da comunicação, a interação se dá com uma jornalista e ponto final. Por que importar-se com a cor da pele da profissional, se a sua condição era de entrevistadora? Por que “quase uma negra” se seu trabalho e compromisso eram de um ser humano respeitado e competente? Por que enquadrá-la em sua pele, desejoso de “quase” não ofender a mulher que o entrevistava, tentando elogiá-la às avessas, pois não havia “intenção nenhuma”? Como explicar essa contradição na prática cotidiana do brasileiro que, supondo ser cordial (Sérgio B. Holanda), expressa a sua linguagem preconceituosa contra o ser humano “quase negro”? 
A discriminação racial que insiste em se defender, negando sua fala e pensamento como não preconceituosos, precisa compreender que a sua linguagem não aparece casualmente em nossas relações humanas. 
A nossa linguagem excludente carece de entendimento social e prática solidária que superem de uma vez por todas a política pública compensatória que, concretamente, não dá aos negros e negras de nosso país protagonismo histórico. Por isso, negamos as atitudes, aparentemente não discriminatórias, sem consciência nenhuma de que nossa linguagem reproduz um preconceito enorme contra seres humanos que: “Apesar de preto, é bonito”! “Quase uma negra na pele, mas é inteligente”, para ficar apenas com alguns poucos exemplos. 
A luta pela inclusão social dos homens/mulheres (negros e negras) não é “mimimi”, mas dívida histórica que a sociedade brasileira insiste em negar. Vidas negras importam, sempre!
 

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