Engaiolando os justos

Lendo um conto de Machado de Assis, escrito em 1883, chamado “A igreja do diabo”, observo bem, que a maldade e a inversão de valores nasceram entrelaçadas com os mitos, como: o Jardim do Éden e da Torre de Babel. No Jardim do Éden, onde o Pai celeste tem a total posse, é proibido se alimentar da Árvore do Conhecimento do bem e do mal. A serpente ou Satã disfarçado, incita a mulher a desafiar o decreto do Todo-Poderoso. A revelação da desobediência se associa à culpa e ao desnudamento. O resultado é o banimento. São expulsos do paraíso. 
No mito de Babel, a torre será usada para adentrar nos domínios que Deus considera seus - o céu. O desfecho é a destruição da Torre que estava chegando ao céu e da linguagem comum, e a disseminação da confusão, de tal modo que a cooperação se torna impossível. Houve então, as diferentes línguas espalhadas pelo mundo. Nesse conto machadiense, o diabo vai até o céu comunicar a Deus que irá abrir uma igreja na terra. Deus perguntou ao diabo, o motivo. O diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo porque tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforge da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso e disse: Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. 
Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura... Velho retórico, tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espirito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. O diabo responde: Senhor, eu sou o espírito que nega, nego a morte, nego tudo. A misantropia (ódio pela humanidade ou falta de socialidade) pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
Senhor responde: Vai, vai, funda a sua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens ..., mas, vai, vai! Realmente, lidar aqui na terra, com a legião do mal, instigada pela transgressão destrutiva regada pelo ódio, terror, crime, tráfico e a maldade em si, é impossível. Sustentar espaços ocupados pelo mal que é infinito, é só para grandes líderes espirituais. Ao lado da divindade há a leveza da fé e da esperança, da crença e suavidade ao caminho estreito, mas cristalino. 
Hamlet escreveu que: “É nobre que a mente possa sofrer, aprender a sofrer ao invés de fugir”. Continuando contando o conto de Machado de Assis, pergunto: A igreja do diabo, deu certo? Conto-lhes o desfecho. A terra ruiu em relação à imoralidade, impunidade, venalidade, soberba, luxúria, preguiça, avareza, inveja, a gula, etc. E o diabo, após longos anos, notou que muitos de seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. 
Certos glutões recolhiam-se aos jejuns em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas... A descoberta assombrou o diabo. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus o ouviu, com infinita complacência. Pôs os olhos no diabo e disse-lhes:- Que queres tu, meu pobre diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. Fim da igreja do diabo. 
Finalizando a confusão de línguas estabeleceu-se, o homem é um eterno insatisfeito. Sempre anseia pela realização dos seus desejos e não tolera a frustração. E por mais que o homem seja bonzinho ou tenha muitas virtudes, bem lá no fundo todo mundo peca.  O poder ao imoral, à podridão, ao fétido, ao criminoso, a destruição, corrupção e a perversão são uma realidade. Aos atos, atitudes ou tomadas de decisões corajosas, ousadas, audaciosas, solidárias, ativas e para o bem comum da sociedade lhe é reservado um engaiolamento, privacidade e restrição da liberdade que lhe é de direito e comum a todos. Salve, salve o engaiolado! Ele merece todo nosso respeito!

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