De tempos em tempos, ouvimos pessoas afirmarem, com certo saudosismo, que no período da Ditadura Militar não havia corrupção. A frase é repetida como um mantra, mas esconde um equívoco perigoso: confundir silêncio com honestidade.
Naquele período, não havia imprensa livre, não havia Ministério Público independente, não havia órgãos de controle com autonomia. O que existia era censura e repressão. A corrupção não aparecia porque era abafada. O silêncio era produto da mordaça, não da virtude.
As grandes obras do regime são provas eloquentes disso. A Transamazônica, anunciada como símbolo de integração nacional, consumiu milhões e milhões de recursos públicos para praticamente não sair do papel. As usinas nucleares de Angra dos Reis foram alvo de reportagens internacionais sobre superfaturamento e irregularidades, mas aqui dentro pouco ou nada se divulgava. Estradas, hidrelétricas e outros megaprojetos foram erguidos sem fiscalização efetiva, sem escrutínio da sociedade civil e sem espaço para questionamentos.
Foi nesse ambiente que se consolidaram práticas de patrimonialismo e fisiologismo. O Estado era usado como balcão de favores, sustentando alianças regionais e atendendo a interesses privados. Um modelo que não só escondia a corrupção, mas a naturalizava, tornando-a parte da engrenagem política.
Enquanto isso, a justiça criminal se mostrava seletiva: dura contra pobres e marginalizados, conivente com os poderosos. O regime ainda criou uma justiça paralela para silenciar opositores políticos, utilizando censura, prisões arbitrárias e tortura. A mensagem era clara: “olhe com quem você está falando”. Aos donos do poder, blindagem; ao povo comum, repressão.
Por isso, é preciso desmascarar o mito. A Ditadura não foi um tempo de moralidade administrativa, mas sim de corrupção sem controle, de privilégios, de arbitrariedade sem transparência. Ter saudades disso é, em última análise, defender um sistema em que o cidadão não pode cobrar, não pode fiscalizar, não pode sequer saber o que está acontecendo.
É verdade que, em democracia, a sujeira vem à tona — escândalos de corrupção são descobertos e denunciados. Mas a punição ainda não ocorre como deveria. Por quê? Porque carregamos maus vícios herdados do passado, reforçados inclusive durante a Ditadura: patrimonialismo, fisiologismo, conivência institucional e jogo de interesses. O sistema expõe a corrupção, mas não consegue romper completamente com a cultura de blindagem dos poderosos.
Para mudar esse quadro, não basta apenas denunciar. É preciso garantir instituições realmente independentes, capazes de investigar sem medo e julgar sem pressões políticas. É necessário um sistema de justiça célere e eficaz, que impeça o uso infinito de recursos para protelar condenações. É fundamental investir em mecanismos de transparência radical — onde cada contrato, cada gasto, cada obra pública possa ser acompanhado pela sociedade em tempo real. E, sobretudo, é preciso que corruptos e corruptores sejam efetivamente punidos, independentemente do cargo e da influência, política ou econômica.
Romper esse ciclo é romper com uma herança histórica. É transformar o barulho da democracia — que hoje revela a sujeira — em um instrumento de limpeza real, com responsabilização concreta. Só assim poderemos superar o mito e construir um país onde honestidade não seja silêncio, mas prática cotidiana do poder público.