Os Cavalos de Deus

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 08/09/2019
Horário 05:20

A expressão “Cavalos de Deus” refere-se a uma passagem do Alcorão que apela aos muçulmanos da seguinte forma: “Voem, Cavalos de Deus, e as portas do paraíso abrir-se-ão para vocês“. 

Ezequiel morava sem o pai e sem a mãe no Morro do Adeus, tinha apenas 16 anos. Seu pai era depressivo e alcoólatra. Morreu atropelado atravessando uma rua na contramão. Foi enterrado como indigente numa vala comum. Quando estava sóbrio gostava de ler essas frases do Alcorão para o filho, queria que ele acreditasse, que sonhasse que depois dessa vida injusta, existia um paraíso. Seu pai trabalhou como jardineiro na casa de um árabe muçulmano que ensinou a ele um pouco da religião islâmica. Saiu do sertão pernambucano para fugir da miséria. Despediu da família, prometendo buscá-la, seu pai também prometeu pra sua mãe, nunca voltou. É a sina de quem vive no sertão.  Olhou para seus 6 filhos e para sua mulher e disse:  “Um dia tiro ‘cês’ desse lugar sem Deus”. Não olhou para trás, não quis que o sol queimasse as suas lágrimas.

O caminhão de pau de arara foi sumindo encoberto pela poeira quente rumo ao sul, grande cidade. Ezequiel nasceu de uma relação, fruto da solidão de seu pai e de uma prostituta. Assim que nasceu, ela abandonou seu pai, queria dinheiro, voltou as ruas, enquanto seu corpo ainda era jovem. Seu desencanto era bem mais forte que a ilusão de um casamento feliz. Ninguém iria acreditar que um dia ela foi uma linda moça sonhadora.

 As drogas massacraram seu sonho de ser médica. Aquele mundo era imperfeito demais. Miséria, abandono social, discriminação, desinformação, analfabetismo, violência e morte. Pior que viver num mundo habitado pela dor, pelo sofrimento, pela corrupção do sistema, era viver num mundo sem esperança, sem oportunidades, o mundo dos esquecidos. Orlando Jogador, chefe do tráfico, protegia Ezequiel, gostava do moleque, tinha perdido um filho vítima da dengue.

Sua mulher virou evangélica fanática, culpa pela perda do filho: “É um castigo de Deus”, fica repetindo na cabeça do marido traficante que um dia quis ser um trabalhador honesto de carteira assinada. Ficou desempregado 4 anos, desistiu de procurar o trabalho, o suor sagrado.  Ezequiel sentia que com seu fuzil, era um Cavalo de Deus, um mártir pronto para morrer e ir para o paraíso. Sua completa alienação, desligado da sua humanidade, não sentia empatia, e nem piedade, virou um instrumento, um fantoche iludido pelo tráfico, a única porta que se abriu para ele.

As vezes sentia falta do abraço do seu pai quando esse o deixava aos cuidados da Pastora Nair da Igreja Universal do Reino de Deus. O sábado vai ser agitado. Orlando Jogador, quer tomar o ponto do Elias conhecido como: “Zóio de Cobra”. Ezequiel, desde muito cedo aprendeu a sofrer com as perdas, afinal a esperança nunca andou ao seu lado. Miguel, o Caolho, era seu melhor amigo. Um dia, o Bope subiu o morro à noite e acabaram trocando tiros. Caolho foi morto por um tiro de fuzil no rosto. Tinha 15 anos. Aquele pedacinho de carinho que ainda restava em seu coração morreu naquele instante em que o seu amigo tombou na calçada.

Ezequiel lembra do sorriso do Caolho, era bonito, ainda mais quando ele via a menina Jussara descendo o morro, arrastando as sandálias, gingando seu corpo de mulata faceira. Iam atrás dela cantando um samba de Geraldo Babão do Salgueiro: "Morro, tu és a minha inspiração"... Sabe que sua vida pode acabar a qualquer momento, sem nenhuma oração. Um combatente, assim que ele se vê. Não tem valores, verdades, sonhos com uma utopia perfeita, moral, expectativas, ideologia, nada, nada, apenas sente a vida quando aperta o gatilho do seu fuzil. A adrenalina vai a mil, as balas rasgando a noite levando a morte.  O tráfico é sua verdadeira família. Chegou o dia de tomar o ponto do Zóio de Cobra. Orlando Jogador tem mais de 70 homens com ele. Não importa a idade, no tráfico todos são tratados como homens sem medo. Ezequiel está tranquilo, acariciando seu fuzil. A noite é de lua cheia. Olha para o céu contemplando a beleza da lua. Ouve os gritos dos companheiros, Orlando Jogador começa a falar:  “Aí família, o papo é reto, nesse caminho muito de ‘noís’ pode não volta, mas ‘noís’ somo irmãos do crime, esse é o mundo que sabemos viver, essa é a vida que escolhemos, quem quiser rezar que reze agora, quem quiser pedir pra Deus proteção que peça agora, ‘vamu’ deixa a esperança aqui, ‘vamu’ mete bala nesse ‘vacilão’, nesse fdp do Zóio, o morro vai ser nosso”.

A gritaria foi geral, todos loucos, o pó branco sendo aspirado pelas narinas ressecadas, os olhos dilatados, vermelhos, cheios de ódio. Por um instante Ezequiel sente saudades do seu pobre pai, mas logo passa, a luta vai ser feroz. Elias tinha feito um acordo com o Big Ed, chefe do tráfico do morro do Macaco. Orlando Jogador foi traído pelo seu melhor gerente, o Tetê, mais conhecido como playboy. Sempre foi ambicioso, sempre desejou o lugar do Orlando, carrega o pecado que o Diabo mais gosta, a vaidade.  O trato era matar Orlando e o Tetê ficaria como chefe do tráfico no Morro do Adeus sob as rédeas do Elias. Sem problemas para o Playboy que sabia esperar e se preparar para outra trairagem.  Estava tudo certo, o Comando Vermelho tinha autorizado, ordem do Anacleto “Bocão” que estava preso em Bangu I. Bocão sempre teve inveja do Orlando Jogador, que era um cara querido no meio da bandidagem. Ai só foi unir a fome e a vontade de comer, pronto, lá estava a traição, que adora essa combinação de sentimentos ambiciosos, mesquinhos que alimentam a inveja covarde. Foram emboscados, Orlando morre, Ezequiel cai mortalmente ferido. Não há desespero em seu olhar, não sente dor, está calmo, as balas dos fuzis continuam rasgando a noite, levando a morte que ele tanto esperou. Um leve sorriso aparece em seu rosto, sente paz e sob a luz pálida da lua fala suas últimas palavras: “PAI, SOU UM CAVALO DE DEUS.

 

Persio Melem Isaac, empresário e cronista aos domingos de O Imparcial. Contato: persiomisaac@gmail.com

 

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