Se eu canto, eu existo!

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 16/05/2021
Horário 04:30

Em meados da década de 1970, eu estudava na Escola Estadual Prof Macedo Soares, localizada em São Paulo. Naquela época ainda havia canto orfeônico na rede pública paulista. Explico para os mais jovens. Tais experiências eram resquícios de um amplo programa de educação musical implantado no país, desde a Era Vargas, sob a batuta do maestro Heitor Villa-Lobos. Aprendíamos os hinos brasileiros, melodias infantis, canções folclóricas e cantorias do rico repertório nacional. 
Ocorre que, assim que cheguei ao ginásio, eu estava mudando de voz e cantar era muito constrangedor para mim. Até o dia que tivemos uma situação muito engraçada. A professora queria que as meninas juntas cantassem “Pega o tatu!” e os meninos respondessem “Pega o tatu!”, em tom grave. Em seguida, todos juntos: “Pega o tatu que está estragando o meu quintal...” Mas não alcançamos o resultado musical esperado entre variações da frase em agudo e grave. A voz dos meninos foi uma sinfonia de bambus rachados de diversos timbres. Eu nunca presenciei um grupo tão desengonçado na minha vida. Foi quando percebi que não estava só!
Apesar do fracasso do “Pega o tatu!”, as aulas de canto orfeônico eram muito divertidas. Havia alguns instrumentos musicais para acompanhar as cantorias, especialmente de percussão. As aulas me despertaram para a possibilidade de tocar com outras pessoas e compartilhar com um grupo a experiência da musicalidade. 
Recentemente, eu aprendi com o Paulo Moura, regente de corais e professor do Instituto de Artes da Unesp, que uma das experiências mais impactadas pelo isolamento social  exigido pela pandemia tem sido o canto. Não há ainda tecnologia digital que substitua a imprescindível prática coral. A voz de cada um precisa vibrar nas cordas vocais do outro. É uma experiência corporal que generaliza o sentimento e unanimiza os indivíduos, como nos ensinou Mário de Andrade. Somos um povo da cantoria. No Brasil da fronteira oeste ainda soa os solos de viola em intervalos de terças, intercalados por versos longos acerca de fatos marcantes da vida. Também resiste a diversidade rica das formas estróficas dos cocos nordestinos, as rezas dos candomblés e das umbandas, a melodia infinita dos fandangos dos caiçaras paulistas, as formas corais monumentais dos reisados.
Lá na rua eu escuto vozes roucas e o som ritmado de botinas em marcha no asfalto. Mas eles serão rapidamente abafados quando numa grande explosão de alegria ecoar o canto engasgado na garganta dos brasileiros. E, de cantoria em cantoria, vamos relembrar quem somos. Se eu canto, eu existo!
 

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