Vende-se carne podre

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 01/12/2020
Horário 06:40

No último dia 26, foi ar pelo YouTube, no canal Elas que Lutam, o primeiro episódio da websérie de mesmo nome e que aborda os mais diversos tipos de violência a que as mulheres estão sujeitas. A obra é produzida pelas alunas do curso de Jornalismo da Unoeste, Ariane Balbino, Beatriz Monteiro, Bruna Bonfim, Helen Gallis, Isabela Souza e Milena Bispo, e orientada por mim.
Na ocasião da pré-estreia, um dia antes, eu falei a uma plateia de quase 80 pessoas sobre a importância da websérie para o contexto atual que vivemos a partir de números cada vez maiores de violência contra a mulher e ressaltei que a nossa missão não terminava no lançamento. 
Pelo contrário, era a partir da entrada no ar do primeiro episódio que os fatores de resistência e luta deveriam ter um outro sentido. Todos aplaudiram e fomos para casa nos preparar para o embate.
E demorou muito para que o mundo do ódio nos chamasse para briga? Demorou muito pouco. 
Um dia após o lançamento do “Elas que Lutam”, um caso sacudiu as redes sociais em Presidente Prudente. Um restaurante decidiu fazer “piada” com o assassinato de Eliza Samúdio e publicou uma postagem que trazia a frase: “O cão é o melhor amigo do homem. Goleiro Bruno”. Outras duas postagens faziam referências à fome e à crise humanitária na Etiópia (“Fazer as refeições juntos, une a família! Etiópia, povo sem união.”; e ao infanticídio da menina Isabella Nardoni (“Filho a gente não cria por nós. Cria pra jogar no mundo”. Alexandre Nardoni).
Tive o cuidado de ler quase todos os comentários gerados nas postagens, a maioria muito revoltada com a posição da empresa, movimentos de cancelamento em rede, ameaças, comparações e pedidos de retratação e retirada das postagens. Havia também defesas bem alinhadas ao pensamento do restaurante, de que eram apenas de piadas e que a maioria dos reclamantes não fazia parte do público fiel da casa.
Lembrei, então, de uma fala do rapper Emicida em uma entrevista sobre o álbum “AmarElo”, recém-premiado com o Grammy Latino. Ele afirmou que a partir do momento em que você é vítima de uma estrutura opressiva, seja ela racista, machista, sexista ou homofóbica, basta um ser humano medíocre para jogar tudo fora. Um só e toda luta tem que ser reiniciada! Sabe aquela placa de “Estamos a ..... dias sem acidentes”? Então...
Ou seja, a estrutura de opressão derruba, corrói, está pronta para agir e esse é o problema para homens, mulheres, crianças e idosos. São todas vítimas de um discurso de ódio, cru, uma carne podre oferecida de forma raivosa e disfarçada, que cheira mal mesmo, que não se compadece ou que não cansa de causar no mundo dores e traumas, as mesmas talvez a que os próprios opressores também são vítimas. O ser humano possui a grandeza que está o seu alcance.
Alguns são capazes de matar um homem de pele preta a socos dentro de um hipermercado e eu me lembro da letra “A Carne (Beba-me ao vivo)”, de Ulisses Cappelletti, Jorge Mario Da Silva e Marcelo Yuka, interpretada com muita resistência e raiva por Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a minha carne negra.”
Outros homens matam mulheres só por serem mulheres, as violentam de várias formas por serem coisificadas; governos geram fome e miséria com a corrupção para que fiquem milionários. E parte da plateia aplaude, compra o produto e faz “piada” porque talvez o mal seja o merecimento mesmo de algumas pessoas.
A crueldade humana tem pouquíssimos limites e está aí, à venda nos mais diversos balcões, físicos ou digitais. Às vezes vem disfarçada de “piada”, mas está lá. É só pedir, que a mercadoria podre é entregue. Ou melhor, não precisa nem ter o trabalho de pedir.
Foi um final de semana péssimo. Um horror ler e sentir desprezo por tais “piadas”. Não foi um caso engraçado. Não foi marketing. Foi mal mesmo. 
 

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