Nos últimos anos, o açaí, fruto de uma palmeira tipicamente amazônica, espalhou-se pelo Brasil. Ele se encontra em toda parte - restaurantes e lanchonetes, servido como sorvete ou como base para sucos, doces e geleias. Confesso que nunca fui muito adepto dessa onda que tomou conta do país. Mas lá estava eu, às margens do Rio Guamá, diante de uma bela porção de açaí servida na cuia, creme espesso e escuro, recebendo o acompanhamento preferido do paraense: a farinha d’água. Que sabor indescritível! O prato veio acompanhado do famoso “tacacá”, o nutritivo mingau de goma, camarões e folhas de jambu - também conhecida como agrião-do-pará, que dá uma sensação de leve amortecimento nos lábios e língua.
O jambu no sabor de fundo do tacacá parecia dizer que, naquela margem do rio, comer é entrar num território vivo. E para apreciar a comida, é preciso aprender seu ritmo, hein. Não é possível comer com pressa. O tacacá esquenta, o jambu adormece, a boca desperta. Cada gole pede pausa, pede respeito. Foi depois dessa sucessão de espantos saborosos que lembrei da frase que li outro dia num artigo de Josimar Melo criticando quem chama carne de “proteína” no cardápio. Ele criticava o hábito de agrupar todos os tipos de carne sob o rótulo “proteína”, como se fossem intercambiáveis ou meramente componentes nutricionais. Mas ali em Belém, onde cada ingrediente tem história e faz parte de pequenas aulas sobre o que significa habitar a Amazônia, reduzir alimentos a nutrientes parece ainda mais absurdo.
Como chamar tacacá de “caldo” ou açaí de “energético”? A linguagem técnica empobrece o que, na verdade, é território, memória, gente que colhe, gente que prepara. Como nos ensina Josimar, chamar carnes de “proteína” em menus - tudo pasteurizado, etiquetado, embrulhado numa ideia de comida que cabe em aplicativo, é “desumanizar o alimento”. É apagar sua textura, sabor, história, cultura — o que para ele é “uma burrice”.
Enquanto a boca ainda formigava, pensei que talvez o jambu fosse a metáfora perfeita para essa discussão. Ele nos lembra que o alimento não é neutro. Ele age. Ele transforma. Ele participa. Reduzir tudo a funções — proteína, carboidrato, vitamina — é um gesto de apagamento. Apaga o território, apaga a história, apaga quem plantou, quem colheu, quem cozinhou. E, de alguma forma, nos convoca a reaprender o óbvio: antes de ser nutriente, o alimento é mundo. É história. É cultura. É vida que pulsa — às vezes até na ponta da língua.